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Pontos de vista

jul 24, 2023 | pontos de vista

Como a desinformação de plataforma transformou notícias falsas em fenômeno global

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Em 1924, uma carta falsa publicada pelo jornal sensacionalista Daily Mirror levou à derrocada do primeiro governo Trabalhista britânico, a quatro dias das eleições. A carta, supostamente escrita por um comunista de destaque, revelaria um plano envolvendo bolcheviques soviéticos e socialistas britânicos. “Grande conspiração revelada”, dizia o jornal em sua manchete. O caso é, até hoje, um dos grandes escândalos políticos do Reino Unido. E foi todo construído em cima de uma notícia falsa, com uma manchete sensacionalista que não deixa em nada a dever às redes de desinformação dos anos 2010-2020. 

Notícias falsas não são algo novo na política, justamente porque têm o poder de alterar direções e tendências. A “Carta de Zinoviev”, como ficou conhecido o caso, guarda semelhanças com as notícias falsas que vemos circular hoje em dia, mas também guarda diferenças fundamentais. A desinformação – em especial a desinformação política – sempre esteve presente, como prática. Mas a desinformação como fenômeno é algo próprio do nosso tempo. 

Quando associada às plataformas digitais, a desinformação incorpora particularidades próprias do modelo de plataforma, favorecendo seu espalhamento e presença generalizada – e o fenômeno da desinformação em nível global. No caso da carta de Zinoviev, foi necessária a implicação de uma empresa jornalística para chamar atenção para a notícia falsa, guardando a primeira diferença fundamental em relação à desinformação nos dias de hoje: a redução da influência dos gatekeepers tradicionais é uma característica marcante do ecossistema (des)informativo de plataforma. 

No Brasil, um caso célebre dos efeitos da centralização em um intermediário é o debate presidencial de 1989, quando, às vésperas do pleito, uma edição duvidosa retratou o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva como radical e despreparado. Hoje, os debates são transmitidos ao vivo e acompanhados, em tempo real, por analistas políticos informais nas redes – influenciadores que constroem uma vasta rede de seguidores de modo totalmente independente do processo editorial do jornalismo profissional, dificultando a versão única de emissoras de TV.  

Além de tornar o processo menos propenso a mecanismos de controle editorial, a distribuição de notícias falsas para redes de seguidores atinge públicos mais suscetíveis ao viés de confirmação, ou seja, pessoas que tendem a acreditar em publicações que confirmem suas próprias convicções. Ao contrário da desinformação como prática isolada, comumente direcionada a um público genérico (como costumam ser os leitores de grandes jornais), a desinformação como fenômeno é distribuída em bolhas nas redes digitais, e segmentada com o suporte do algoritmo. Esta é outra característica das plataformas: utilizam o trabalho do algoritmo para conectar produtores e consumidores com precisão jamais vista antes nos sistemas informacionais tradicionais. 

Como resultado destas duas características – a eliminação de gatekeepers e a segmentação por algoritmo – as plataformas permitem que a distribuição de conteúdo contemple áreas ociosas nas mídias de massa, mirando pessoas que não se sentem contempladas pela cobertura da imprensa tradicional, e temas ou perspectivas que não passam no crivo editorial do jornalismo profissional. Assim, informações consideradas “marginais” circulam livremente e com alta audiência

Embora essa função fosse exercida por zines, folhetos e jornais alternativos no passado, uma vez que a eliminação do intermediário aliou-se à precisão da distribuição algorítmica, foi possível atingir um alto grau de eficiência no alcance de conteúdos alternativos – inclusive os falsos, exagerados, descontextualizados, ou simplesmente mentirosos. 

Finalmente, as plataformas permitem ciclos de feedbacks muito mais rápidos que as mídias tradicionais, facilitando os testes A/B, em que diferentes abordagens para o mesmo conteúdo são colocadas em circulação para avaliar qual chama mais atenção, promove engajamento e atinge os objetivos estratégicos de comunicação. Definida a melhor forma para o conteúdo, retira-se a peça menos eficiente e impulsiona-se aquela que atingiu os objetivos mais rapidamente. O mesmo pode ser feito em relação ao tema, colocando em circulação diversas narrativas falsas e reforçando, ao longo das semanas seguintes, aquelas que geram mais danos reputacionais ao adversário. 

Além de gerarem feedbacks muito rápidos, as plataformas também permitem um nível de aprofundamento maior sobre a opinião pública. Se a medição tradicional diária se limitava a dados quantitativos (tiragem; número de espectadores ou de assinantes, etc.), nas redes sociais, o feedback cotidiano relaciona esse tipo de dado (número de seguidores, de visualizações, alcance, engajamento, etc.) à análise qualitativa, com sentimentalização (posts com viés positivo, negativo ou neutro) de comentários e clusterização de perfis, por exemplo. Diferentes ferramentas de escuta social (ou social listening) servem a esse propósito e são amplamente utilizadas. 

São, portanto, quatro as características principais das plataformas que ajudaram a transformar a desinformação de prática isolada em fenômeno generalizado: a redução da influência de intermediários tradicionais (gatekeepers), a segmentação da distribuição algorítmica, a valorização de públicos e visões marginais à agenda editorial do jornalismo profissional, e os ciclos muito rápidos de feedback. 

Tanto no caso da carta de Zinoviev quanto no debate presidencial de 1989, a prática da desinformação prescindiu de todas essas características: foi capitaneada por um intermediário consolidado, distribuída de forma genérica em mídia de massa, explorou visão amplamente difundida sobre seus alvos e circulou pouquíssimo tempo antes do pleito para não haver um ciclo completo de feedback que colocasse tal versão em xeque. No atual fenômeno da desinformação, o modo organizativo do capitalismo de plataforma é incorporado à produção de subjetividades, desconcertando antigos modos de construir contra-narrativas. O ecossistema informacional mudou a disputa política de modo inexorável e, para combater os efeitos nocivos da desinformação de plataforma, é preciso utilizar esta mesma lógica de produção de distribuição.

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Marcela Canavarro

Marcela Canavarro é consultora em Comunicação Digital, com ênfase em inteligência de dados, pesquisa digital e comunicação política. Tem experiência em monitoramento e análise estratégica de redes sociais em agências de comunicação (FSB, Digital Group, Nova/SB), pesquisa em comunicação política (InescTec/Universidade do Porto e UOC/Barcelona), magistério (FGV e Eco/UFRJ) e reportagem (Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, EBC, CBC/Canadá, Calgary Herald/Canadá e TimeOut Rio). É formada em Jornalismo (UFRJ), com mais de 10 anos de especialização em digital, mestra em Comunicação e Cultura (UFRJ) e doutora em Mídias Digitais (U.Porto).

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