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Pontos de vista

acervo pessoal

nov 21, 2022 | pontos de vista

De onde vêm nossas ideias? Da reflexão detida ou dos memes do WhatsApp?

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A cena é recorrente nos mais variados contextos. O alerta da notificação chega naquilo que um dia foi apenas um telefone celular. Nossa atenção se desloca automaticamente. Quem ou o que nos chama? O estímulo envolve traços decisivos de nossa condição e natureza: curiosidade, comunicação, informação. Tais conteúdos nos impactam e mudam nossas rotinas de pensamento, nossas emoções e reflexão. Bombardeados por conteúdos de várias frentes e temas, verossímeis ou não, nossos humores mudam, ficamos impactados e reativos com imagens e textos que nos chegam. Ao saber o conteúdo, seja o que for, muitos de nós não resistimos ao encaminhamento para grupos, feeds, timelines e publicações. A expectativa é que o que nos capturou e produziu reação também faça isso com outros e outras.

No entanto, os sujeitos envolvidos na situação acima destoam de uma compreensão comum que temos de nós mesmos. Nos imaginamos sujeitos racionais e soberanos acerca de nossas ações e crenças, capazes de controle pleno sobre o que nos afeta. Jamais uma informação recebida sem bases sólidas iria mudar o que pensamos ou sobre o que refletimos. Afinal, somos sujeitos íntegros, conscientes e capazes de distinguir “o belo, o bom e o verdadeiro”, como queriam os gregos clássicos, que nos legaram um sistema político baseado em tais expectativas. No entanto, esse retrato começou a ser repensado. Essa mudança de bases é oriunda de pesquisas nas áreas de psicologia cognitiva, neurociências e biologia evolutiva, entre outras, e mostram que contextos, emoções e afecções nos envolvem muito mais do que pensamos.

Uma dessas hipóteses é desenvolvida pelo cientista político espanhol Manuel Árias Maldonado no livro La Democracia Sentimental: Política y emociones em el siglo XXI (2016). Este teórico defende que, com o crescente impacto das mídias sociais na política contemporânea, percebemos que nunca fomos tão soberanos quanto um dia pensamos. Sujeitados aos ritmos dos algoritmos das redes sociais, que pautam nossos humores, crenças e escolhas, assim como a propaganda fez de modo mais ameno no século XX, não sabemos mais de onde vêm nossas ideias: da reflexão detida ou do meme político do grupo de Whatsapp da família? Maldonado sugere que lidamos com um “sujeito pós-soberano”, um sujeito estranho ao que pensamos sobre nós mesmos, impactado por pequenos traços de informação pouco confiáveis. Além de aberto a vieses e tendências que não reconhece, negando evidências muitas vezes pautado por informações falas, fantasiosas e absurdas, é tribal e fechado às complexidades e análises mais aprofundadas sobre as circunstâncias que o cerca.

Em outros tempos, quando as dinâmicas das relações não eram tão intensas, ainda seria possível imaginar um controle mais amplo sobre os modos como percebíamos o mundo à nossa volta. No entanto, as coisas mudaram. Aquele alerta que recebemos pela manhã mostra possibilidades, uma informação decisiva agora compartilhada, estimulando e reforçando reações e crenças.  Os casos do impacto da ação de empresas de tecnologia nas eleições dos Estados Unidos, os rumos da (violenta) campanha política no Brasil, além dos negacionismos variados que presenciamos, mostram o papel do sujeito acrítico, reativo e pouco aberto a possibilidades e alternativas. Esse quadro traz impasses para nossas expectativas em relação às eleições democráticas, estruturadas a partir de um modelo de humano livre e racional, imune a falsidades e capaz de saber o que é melhor para si e para a polis. Porém, discursos e carismas sempre nos conquistaram e afetaram nos comícios e nos horários eleitorais. O que mudou é que agora eles nos falam diretamente, na palma de nossas mãos. 

O que fazer? A proposta de Maldonado é estimular cada vez mais uma modalidade de razão cética, que duvida e critica antes de aceitar visões e hipóteses questionáveis – algo plenamente possível para formas de vida como a nossa. No entanto, esse passo exige humildade e reflexão, reconhecendo que não somos tão racionais quanto pensávamos ser, juntamente com o desenho de circunstâncias institucionais e estímulos que garantam tais procedimentos. Temos hoje mais informações disponíveis sobre o funcionamento da psicologia dos seres humanos, e podemos lidar melhor com nossas limitações. Aqui, o reconhecimento de tais circunstâncias é necessário para que possamos estruturar e construir melhor nossos processos educacionais e políticos. O risco de não o fazer é, além de mantermos ilusões a respeito de nossa própria natureza e condição, ficarmos à deriva política, como a que estamos agora, num mundo infestado por estímulos que deixam pouco espaço para reflexão e análise detidas – e, consequentemente, extremismos variados e perigosos.

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José Costa Júnior

Professor de Filosofia e Ciências Sociais do Instituto Federal de Minas Gerais - Campus Ponte Nova. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2017). Atualmente é pesquisador vinculado ao Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e ao Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca. Desenvolve estudos sobre a racionalidade e seus limites, considerando principalmente os desafios sociopolíticos do nosso tempo.

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