#Panorama2023
Esta entrevista faz parte da série #Panorama2023, entrevistas sobre o contexto da desinformação pós eleições, seus impactos na sociedade e futuros possíveis para combater o problema.
O extremismo que tomou as redes sociais chegou também às crianças. Ninguém foi poupado, especialmente, durante a campanha eleitoral. O que vemos agora é uma naturalização do discurso de ódio por crianças e adolescentes contra grupos minorizados e ataques violentos em escolas, justamente o ambiente que deveria mediar este debate contra o extremismo. Nesta entrevista, o pediatra e sanitarista Daniel Becker, fala do papel de toda a sociedade na proteção das crianças contra desinformação e radicalização de pontos de vista, bem como da importância da educação midiática em toda a formação escolar.
Becker, que é docente da UFRJ, trata ainda da necessidade de regulação externa das plataformas digitais, já que “Instagram, Meta, Youtube e Twitter não fazem controle do que circula em suas redes”. Esta entrevista faz parte da série #Panorama2023 e foi feita por Ana d´Angelo e Paula Campos.
PAULA CAMPOS – Considerando o fato de nossas crianças e adolescentes serem nativos digitais, considerando ainda a escassa rede de apoio que é a realidade de boa parte das famílias brasileiras, como encontrar o equilíbrio entre o ideal e o possível no tocante ao tempo de tela x livre brincar?
DANIEL BECKER – Sem dúvida não é nem só o fato de que as famílias não têm rede de apoio. É que as corporações por trás dos celulares – as big techs Google, Youtube, TikTok, Instagram – tudo ali conspira para nos viciar. Não tem produto grátis, se o produto é grátis é porque você é o produto. Então quanto mais tempo a gente passa nas redes sociais, mais eles ganham dinheiro com publicidade. E para nos viciar, eles desenvolvem uns cem números de mecanismos com base em neurociência, melhores programadores do mundo, gente muito bem paga e investimentos altíssimos em retenção da atenção.
E aí é claro que as crianças são muito mais suscetíveis. Se os adultos já estão viciados, não conseguem sair do celular, as crianças muito mais. E quando o pai e a mãe negarem vai ter briga, vai ter birra, vai jogar no chão, “eu quero, eu quero, eu quero”. É como alguém em crise de abstinência.
Isso não pode cair só no ombro das famílias. Tem muitos fatores, como vocês mesmo colocam: falta de rede de apoio, o fato de as crianças já serem nativas, de não ter opções, de a vida moderna, de alguma forma, impedir que as crianças saiam. A violência assombra todo mundo, mas muitas vezes é uma percepção exagerada usada como alegação pra criança não sair. Ou então porque não tem tempo, porque os pais não conseguem levar, não tem quem leve, não tem babá, a vovó não pode, e a criança fica fechada em casa, e claro que fechada em casa ela acaba mergulhando nesse universo.
A gente esquece que existem alternativas, como ler, desenhar, tocar violão, cantar, passear. Pode fazer outras coisas mais criativas. A criança sabe brincar, mas ela não é exposta à possibilidade da brincadeira. Pediu o celular, toma o celular; pediu o tablet, toma o tablet; pediu televisão, liga a televisão, porque ninguém quer se aborrecer, ninguém quer passar pelos primeiros minutos de reclamação ou de birra. E se passar, a maioria das crianças vai conseguir brincar porque elas têm o cérebro com o circuito pronto para brincadeiras – não precisa ensinar a criança brincar, ela sabe brincar espontaneamente, é a linguagem essencial dela.
Mas claro que isso não pode recair só no ombro das famílias, essa é uma questão de toda a sociedade, em especial da escola, que precisa se engajar profundamente na questão da educação digital ou educação midiática, como vocês chamam.
PAULA CAMPOS – É exatamente nossa segunda pergunta. Como você enxerga a necessidade e a urgência da educação midiática para crianças e adolescentes? Quais seriam os papéis das escolas e da sociedade neste pacote educacional já que o que vemos com frequência hoje é que esse assunto é mais um item no carrinho da sobrecarga familiar, sobretudo a materna?
DANIEL BECKER – A escola tem que discutir isso com os adolescentes, tem que falar dos mecanismos de vício com criança e adolescente. Tem que limitar o uso na escola, tem que dar o exemplo, celular e escola são incompatíveis, uso dentro da escola deveria ser totalmente proibido, na minha opinião. Entrada e saída ok, mas nada mais do que isso, dentro da escola não deve haver celular, a não ser para uso didático e aí a escola tem que fornecer as telas próprias ou ter alguma coisa específica, mas não no celular da criança, até pelo menos o final do fundamental 1.
Ensino médio é outra realidade. E a gente sabe que as crianças estão usando o celular no recreio, ficam sentadas em vez de brincar, jogar bola; os adolescentes ficam vendo TikTok durante as aulas. A situação é grave, é bem grave. Então é uma questão de a escola falar sobre cidadania digital, sobre segurança, sobre privacidade, sobre respeito, sobre fake news, sobre política e polarização, sobre publicidade versus conteúdo, segurança, cyber bullying, tudo isso são questões fundamentais para que a escola aborde.
E mais que isso, nós temos que ter política pública para regular a internet, regular as redes sociais em especial, que são as mais perigosas. Então se Instagram, o grupo Meta, o Youtube ou o Twitter não fazem controle da sua rede, tem que ser controlado de fora, mas isso é uma utopia aqui no Brasil, obviamente que não vai acontecer, mas deveria haver controle por política pública desse tipo de atividade.
Nos Estados Unidos e Europa eu sei que há iniciativas de regulação do mundo digital, especialmente das redes sociais. Eu não sei onde eles vão chegar, mas certamente vão chegar em algum lugar e vai ser em breve. Nos Estados Unidos existe uma iniciativa da saúde para questionar especialmente o grupo Meta nas suas estratégias de sugar, de viciar pré-adolescentes e adolescentes. Isso foi quase confessado pelos executivos do Instagram, sobre depressão especialmente em meninas adolescentes. É uma questão que especialistas precisam discutir junto com pediatras, com educadores, com representantes da sociedade civil, porque é uma responsabilidade de toda a sociedade.
Ana d´Angelo – Com base em sua experiência, aponte-nos os principais riscos existentes no uso abusivo das tecnologias por crianças e adolescentes? Quais os adoecimentos mais comuns vem observando? Esses efeitos danosos vêm sendo medicados? Quais os riscos desta medicalização?
DANIEL BECKER – O uso excessivo de telas e tecnologia digital provoca transtornos de todos os tipos nas crianças. Começa pelos pequenos que podem ter atraso de linguagem se ficarem muito tempo nas telas. Você afasta a criança de quatro elementos fundamentais da infância: afasta a criança do meio externo, que é o seu território essencial, que é a natureza, o parque, a praça, a brincadeira. Segundo, a confina entre quatro paredes e isso já leva a alterações psíquicas. Terceiro, afasta a criança do próprio corpo que iria correr na pracinha, atrás do cachorro ou da bola, mas está no sofá, sedentário, jogando em posições inadequadas, gerando posturas patológicas, deixando seus corações e seu sistema cardiovascular respiratório enfraquecido, seus músculos e ossos enfraquecidos, ossos rarefeitos.
O corpo da criança é feito para movimentos e a falta de movimentos lesa esse corpo, também promovendo o ganho de peso e até a obesidade porque muitas vezes esse dia no sofá é acompanhado de salgadinhos, de biscoitinhos.
O exagero das telas também tira a criança da socialização, que é outro elemento fundamental da infância, onde a gente aprende as principais habilidades que vai utilizar quando adultos. E por último é o exílio da sua própria imaginação, da sua própria fantasia, a capacidade de criar, de inventar histórias, de inventar brincadeiras. Uma criança que você diz “não” quando ela pede o celular, você fala: “vai brincar com alguma coisa”, ela vai ser despertada, aquilo vai desafiar a sua imaginação, a sua criatividade. Ela vai para o quarto, vai pegar uma caixa de sapato, vai fazer uma bola de meia para fazer cesta na caixa, ela vai brincar com as bonecas, vai brincar com o lego, vai brincar com a massinha, com o desenho, ou com a colher de pau para bater na caixa, enfim, ela vai inventar coisas.
Uma criança que você dá o celular, você desliga o cérebro dela, especialmente se você entrega um aplicativo com vídeos curtos, que é totalmente repouso para o cérebro. E o cérebro, como um grande consumidor de energia, ele pede repouso, então aquilo é mais um mecanismo de vício.
Os mecanismos de vício são inúmeros, principalmente através da dopamina, que é estimulada pelo pertencimento, pelos likes, por ver os vídeos que gosta. Quando você estimula a dopamina, o cérebro pede mais, ele quer mais dopamina, mais… então você fica repetindo ou permanecendo naquela atividade indefinidamente.
Mas o vício do repouso também é outro mecanismo de vício. O cérebro consome muita energia e se tem uma atividade que o deixa em repouso, ele fica muito feliz e fica ali, não quer saber de mais nada. Então a criança fica com o cérebro desligado, hipnotizada, totalmente inativa, sem fazer novas conexões. Então estes seriam os exílios da criança quando a gente entrega um celular ou tablet para ela e a deixa muito tempo ali.
A perda do sono também é importantíssima, a criança começa a dormir mal, dormir pouco, tem pré-adolescentes e adolescentes que dormem com o celular carregando no quarto, eles acordam de madrugada para ver o celular, aí o sono fica interrompido, é um horror. E aí vem os transtornos por causa das redes sociais, cyber bullying, aí começa a ter depressão, afastamento das atividades presenciais, começa a ter transtorno de imagem corporal porque os outros são lindos e magros. E aí vai para o self-cutting, a autolesão, para depressão e para o suicídio. A epidemia de saúde mental, de adoecimento mental e emocional na infância e adolescência de hoje não é só devido às telas, mas elas têm uma grande parcela da responsabilidade por essa epidemia que a gente está vivendo.
Ana d´Angelo – A gente vem acompanhando relatos de manifestações racistas e xenofóbicas no contexto escolar, entre crianças e adolescentes, relacionados ao resultado das últimas eleições. Sob a ótica do seu trabalho, que prima pela saúde integral de crianças e famílias, você pode nos apontar saídas possíveis para esse problema?
DANIEL BECKER – Eu fiquei muito triste quando eu vi crianças em manifestações racistas, fascistas, nazistas. É muito mais do que polarização política, são crianças que não nasceram racistas, odientas e raivosas, dominadas pelo ódio, mas são atitudes, pensamentos e reverberações engendradas pela família e pela sociedade. São crianças que estão sendo afetadas por valores familiares que, por sua vez, são afetados por essa loucura social que a gente está vivendo, a polarização e a dominância do ódio na sociedade brasileira, que chegou ao ponto extremo de estar contaminando as crianças.
Estamos colocando na boca das crianças discursos nazistas contra judeus, contra negros, contra petistas, contra nordestinos, contra pobres. A gente viu aí uma olimpíada, jovens e adultos estudantes de Medicina de uma faculdade aqui do Rio, da Baixada Fluminense, que são filhos de papai rico, gritando: “eu sou playboy, não tenho culpa se o seu pai é motoboy”, esse tipo de coisa. Eu fico machucado quando eu vejo isso em crianças e adolescentes porque eu sinto isso como um fracasso da nossa sociedade mesmo. É evidente que isso é produto de um lado, que é o lado que cultivou o fascismo, cultivou as mentiras, que incentivou a polarização, que tornou a política um território de ódio, que incentivou o armamentismo, que usa esse discurso da morte, discurso do fuzilamento, da eliminação dos adversários, da tortura, a gente sabe muito bem qual é o lado que gerou isso, né? E isso deveria ter um limite, aproveitando que essa gente saiu do poder, a gente deveria pensar em políticas que controlassem esse tipo de manifestação porque a intolerância não pode ser tolerada, porque ela destrói a sociedade.
Então pensar em políticas públicas, em intervenções jurídicas, que possam reduzir manifestações de ódio, controlar manifestações de ódio, especialmente as manifestações que são de caráter propagandístico, como fazia Goebbels na Alemanha. O que o Gabinete do Ódio conseguiu construir, essa onda, tsunami de mentiras e de construção de um ambiente de ódio, é de uma perfeição, assim, é de uma inteligência, e isso vem de tecnologias que certamente vêm de fora, não foi o Carlos Bolsonaro que inventou, isso é Steve Bannon e companhia ltda, e muito bem financiados, né? A gente tem que se contrapor a isso, a gente tem que saber como se interpor a isso para que o efeito na sociedade seja reduzido, especialmente nas crianças. E aí o papel principal para se chegar nas crianças é da escola, a escola não pode se isentar dessa discussão, né? A gente sabe inclusive que tem muitas escolas que estão… cujos diretores, uma parte do corpo docente, foram fisgados, entraram nesse universo do ódio, mas tenho esperança de que a maioria não, de que a gente possa trazer para a discussão, especialmente dos adolescentes, a partir do fundamental 2, não é ensino médio, é fundamental 2, pegá-los com 12, 13 anos, para entender de onde vem isso, para conversar com negros que sofreram com racismo, com nordestinos que sofreram com xenofobia, com judeus que foram vítimas do Holocausto, com gente que esteve do lado de lá, que esteve no ódio e que se remendou, que percebeu o erro que estava cometendo e voltou atrás. Que eles possam fazer simulações, jogos, júris simulados, que eles possam de forma participativa discutir essa onda de ódio, discutir o Nazismo a fundo, ter uma coisa chamada Educação [do Holocausto], quem fala disso muito é o Michel Gherman, que deveria estar sendo mais estudado nas escolas, porque ela é o fundamento da educação antirracista, anti-ódio, a gente deveria estar estudando a fundo a escravidão brasileira, tudo que resultou dela. As escolas têm um papel fundamental e isso deveria ser uma prioridade hoje. A escola tem que se implicar na vida da sociedade, na vida das crianças, então a gente precisa de uma reforma profunda porque não se pode aceitar que crianças e adolescentes estejam nesse nível de envolvimento com ideologias de intolerância, isso é muito grave. A ação passa pela sociedade e, principalmente, pelas escolas.