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dez 7, 2022 | Destaques, Notícias

Conheça o cotidiano traumático de um moderador de conteúdo 

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Atenção: a entrevista abaixo com uma pessoa que atuou como moderador de conteúdo contém conteúdo sensível com referências a violência física, pedofilia e estupro.

Ao chegar no escritório, Ricardo (nome fictício) cumprimentava os colegas, puxava a cadeira e ligava o computador. Começava ali a primeira das oito horas diárias como moderador de conteúdo, analisando vídeos e imagens de pedofilia, autoflagelação, terrorismo e racismo.

Contratado para “análise de redes” por uma empresa terceirizada que prestava serviços de moderação para o Facebook na Europa, Ricardo trabalhou por seis meses, em 2019, averiguando e excluindo postagens denunciadas no mercado europeu para a manutenção das políticas e regras da plataforma. Em apenas um dia, ele chegava a analisar até 1.200 peças do tipo.

O jornalista, imigrante no velho continente, viu no trabalho uma oportunidade de salário e de conhecer as engrenagens que movem as grandes plataformas digitais. No início do serviço, porém, começou a perceber os desafios que precisava lidar como moderador.

“No caso dos vídeos, a orientação era para ver tudo sempre até o final, pois alguns conteúdos eram camuflados. Lembro de um vídeo de uma receita de bolo que lá pelo meio cortava para uma cena de uma pessoa sendo degolada”, relembra.

Além dos conteúdos sensíveis e perturbadores, também começaram a ser frequentes incertezas sobre os turnos de serviço e pressões das lideranças de equipes, como a contabilização das pausas para o café e até das idas ao banheiro.

Questões como essas estão chegando cada vez mais ao público, expondo as condições de trabalho que moderadores de conteúdo estão sendo submetidos ao redor do mundo. Na Colômbia, por exemplo, o Ministério do Trabalho entrou com investigação contra o TikTok após denúncias de trabalho traumático.

O pesquisador Gabriel Penna, um dos autores de um estudo que evidencia a concentração do mercado global de moderação de conteúdo na Europa, comenta que o trabalho de moderador está vinculado a situações muitas vezes insalubres.

“É só no início do mês que a pessoa descobre se vai trabalhar de manhã, de tarde ou de noite. Você tem jornadas de trabalho longas, atendimento psicológico que muitas vezes não é o ideal”, pontua Penna.

O ex-moderador do Facebook contou ao *desinformante, sob condição de anonimato, detalhes do cotidiano de trabalho, marcado pela exposição a conteúdos violentos, pressão das lideranças e falta de suporte psicológico. Leia a entrevista na íntegra abaixo. 

Desinformante: Como você soube da vaga de moderador de conteúdo? A descrição continha informações sobre as condições de trabalho?

Eu soube da vaga por um amigo que já trabalhava como moderador. Ele me contou que estava aberto o processo seletivo feito por uma empresa terceirizada de recrutamento que fornecia serviço para diversas plataformas e mercados de idiomas diferentes. O anúncio da vaga não continha nada específico, apenas a indicação de “análise de redes”. Durante a entrevista fui consultado sobre a minha tolerância à exposição de conteúdos sensíveis e sobre a minha fluência em outros idiomas (sobretudo inglês), mas as especificações das condições de trabalho e o nome da empresa em questão não foram informados.

Desinformante: Você passou no processo seletivo e logo começou a trabalhar com moderação?

Não. Depois de passar na seleção, fui submetido a uma formação de duas ou três semanas, com uma equipe de técnicos e professores da empresa. Todo o curso era em inglês e o idioma também era exigido nas intervenções em sala de aula. No treinamento, nós aprendíamos sobre a importância da atividade de moderador, como salvar vidas encaminhando perfis suicidas e de autoflagelação, denunciar redes de pedofilia, combater o racismo etc. Também éramos alertados sobre a necessidade de manter sigilo sobre um trabalho “tão importante”. Enfim, a fase de formação, além da conscientização sobre a atividade, tinha como base a apresentação detalhada de toda a política de moderação da plataforma, seguida por testes diários e semanais acerca da sua aplicação na exclusão ou permissão dos conteúdos.

Desinformante: O treinamento tinha alguma avaliação eliminatória?

Para passar no treinamento, que por sua vez era remunerado, exigia-se o mínimo de 80% de acertos nos testes de moderação, que além da opção de permitir e ignorar, demandava a correta descrição das razões da tomada de decisão, a qual deveria ser justificada conforme a política X ou Y. Cerca de metade da turma foi reprovada nessa fase. Os colegas que não passaram nem tiveram a chance de voltar na sala para se despedir de nós.

Desinformante: O que você fazia como moderador de conteúdo?

Depois que assumi o trabalho, a rotina era colocar em prática o que havia aprendido no curso. O que nos era passado é que os conteúdos (fotos, vídeos, memes, comentários, textos, tudo o que poderia ser postado) estavam ali para avaliação porque algum usuário havia denunciado. Havia também uma equipe exclusiva para verificação de fraudes nas contas. Porém, não se tratava apenas de deletar ou ignorar o conteúdo, mas justificar cada decisão com base na política da rede social. Havia conteúdos que feriam mais de uma política de moderação, por exemplo, mas a decisão precisava ser pela infração mais alta. O curioso é que os usuários encontravam sempre alguma forma de burlar as políticas e constantemente precisávamos ter treinamentos para atualizar as decisões. 

Desinformante: Por exemplo?

Um mamilo feminino não pode ser exposto na rede, mas se houver uma tatuagem ou piercing a situação já mudava, na minha época. No caso de exposição dos seios femininos em campanhas de câncer de mama ou casos de amamentação também eram liberados. A nudez em pinturas, esculturas, arte em geral também era permitida. Ou seja, as decisões eram bem mais complexas do que se pode imaginar.

Desinformante: E como era a rotina do trabalho?

Nós tínhamos turnos bem definidos, porém, rotativos. Eram quatro dias de trabalho, seguidos por dois dias de folga, que sempre caíam em dias de semana diferentes. Como o trabalho de moderação precisava contemplar as 24h por dia, a equipe precisava se revezar nos três turnos para oferecer a cobertura total.  Eu sofria muito com as mudanças de horários, nosso corpo sofre para se adaptar toda semana a um horário diferente. Era também difícil conciliar uma rotina de alimentação, de exercícios físicos, de estudo e até de vida social (fora do ciclo de colegas da empresa) diante de tantas mudanças.

Desinformante: Quantas postagens, em média, você moderava?

Nas primeiras semanas era comum analisar cerca de 300, 400 itens por dia. Mas logo a meta subia, dobrava; quando vi, estava analisando 1200 itens por dia, o estímulo era sempre analisar mais e mais. Um percentual dos conteúdos analisados por cada moderador era submetido a um controle de qualidade interno, feito pela própria equipe, e externo, feito pela sede da plataforma. Lembro de haver uma tolerância de até 20% para decisões erradas. Quando os nossos erros caíam na “peneira”, precisávamos justificar porque aquelas decisões foram tomadas, citando as políticas e explicando cada uma ao revisor. Além disso, a orientação era para ver tudo sempre até o final, no caso de vídeos, pois alguns conteúdos eram camuflados. Lembro de um vídeo de uma receita de bolo que lá pelo meio cortava para uma cena de uma pessoa sendo degolada.

Desinformante: A moderação de conteúdo era apenas em um idioma?

Quando um moderador era recrutado para um mercado específico, trabalhava apenas para aquele mercado, no idioma em questão.

Desinformante: Como era o ambiente de trabalho na empresa?

Apesar das metas de trabalho, pressão por números e qualidade e da troca constante de horários, forjava-se um ambiente “descolado”. Máquinas livres de cafés e chocolates quentes, salas de trabalho modernas, jogos de totó, lanche surpresa (pizza, cupcakes), festa de confraternização bacana. Isso contrastava, por exemplo, com o fato de ter que ligar um cronômetro sempre que eu me levantava do computador para ir ao banheiro ou buscar um café. Tudo isso precisava ser computado como a minha hora de intervalo de trabalho. Era importante se mostrar uma empresa “descolada” para quem trabalha, mas ao mesmo tempo não existia um compromisso real com a qualidade de vida do colaborador em relação à rotina de horários, à saúde mental diante da pressão por metas etc.

Desinformante: A empresa fornecia apoio psicológico? Se sim, como era esse acesso?

A empresa oferecia apoio psicológico, porém limitado, pois era muita gente para marcar horário com apenas um profissional disponível. Muitos moderadores passaram por problemas como ansiedade e depressão em decorrência da exposição a conteúdos sensíveis. Eram oito horas por dia, na frente da tela, sendo expostos a conteúdos como pedofilia, autoflagelação, terrorismo, racismo, tanta coisa ruim. Era uma espécie de deep web na web, algo que o usuário comum nem imagina que existe, graças ao trabalho de moderação. Lembro que o primeiro vídeo que vi foi de um suicídio. Outra imagem que me marcou muito foram cabeças degoladas após suposto atentado terrorista. Também vi vídeos horríveis de zoofilia, doenças e abusos de forma geral.  

Desinformante: Como você e seus colegas de trabalho lidavam com essa exposição a conteúdos tão violentos?

Foram meses bem difíceis para a minha saúde mental. Alguns amigos adoeceram e passaram a tomar ansiolíticos e antidepressivos. Eu só senti o impacto real um mês depois de deixar o trabalho: dificuldades para dormir, ansiedade, medo. Tive uma crise de pânico forte e precisei tomar medicamento por um tempo. Outros colegas se adaptaram melhor às condições de trabalho e, por uma questão de escolha ou necessidade, estão lá até hoje. Inclusive, conseguiram alcançar posições de liderança na empresa.

Desinformante: E como vocês lidavam com a dinâmica do trabalho?

Depois da adaptação inicial, entramos em modo automático de trabalho. Porém, depois de um tempo, nos sentimos robotizados diante dos dados, das pressões, da falta de espaço para uma tomada crítica de decisão. Havia uma sensação generalizada de insatisfação. Alguns se acomodavam ali pela dificuldade de encontrar outras oportunidades de trabalho ou mesmo porque sonhavam em subir de posição na empresa (havia possibilidade de mobilidade para líder de equipe, gestor de mercado, para quem se destacava). Eu trabalhava ao lado de jornalistas, arquitetos, administradores, professores, pessoas de formações distintas que, por estarem em outro país e não conseguirem espaço de trabalho em suas respectivas áreas, encontraram ali uma oportunidade de trabalhar em ambiente de escritório e com contrato regular.

Desinformante: E após ter saído do trabalho, qual a sua avaliação sobre a experiência como moderador de conteúdo?

Por ser da área da Comunicação, apesar disso tudo, foi uma experiência importante para eu entender como as coisas funcionam do outro lado da plataforma. Existia um interesse genuíno de pesquisa naquela atividade. Porém, devido a acordos de confidencialidade, jamais poderei publicar nada sobre a experiência em meu nome. Hoje, alguns anos depois, eu me sinto mais à vontade para falar acerca disso, ainda sob anonimato, porque de uns tempos para cá as questões se tornaram públicas em relação ao tratamento dos dados e regimes de trabalho dessas big techs.

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