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acervo pessoal

mar 7, 2022 | Pontos de Vista

Consumir conteúdo em velocidade mais rápida pode desinformar?

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Celebrada por uns, condenada por outros — pelo menos em público, porque se os smartphones falassem… –, a moda se aboletou confortavelmente nas telas e delas não sairá. Áudios e vídeos podem ser degustados em sua velocidade normal, em opções mais rápidas ou mais lentas. Sobre essa última não vale gastar muitas linhas: fazem a alegria de quem precisa transcrever textos, mas não são propriamente campeãs de audiência. O troféu vai, é claro, para as playback speeds de 1.25, 1.5, 1.75 e até 2 vezes a velocidade normal, o que transforma qualquer voz em potencial dubladora de Alvin e os Esquilos.

Ouvir áudios ou assistir vídeos em velocidade mais rápida pode desinformar? O *desinformante me provoca a refletir sobre a questão, para a qual tenho de pronto uma “meia resposta”. Desinformação e fake news são meus objetos de pesquisa, mas o tempo, não. Esse assunto é especialidade de minha colega Michelle Prazeres, professora do mestrado e da graduação da Faculdade Cásper Líbero. Ela lidera um grupo de pesquisa que analisa justamente as reverberações e efeitos da chamada “aceleração social do tempo” em campos como o da comunicação. Juntos, escrevemos o artigo “O fake é fast? Velocidade, desinformação, qualidade do jornalismo e media literacy”, publicado na revista Estudos de Jornalismo e Mídia, da UFSC. Parte das ideias aqui contidas se baseia nesse texto acadêmico.

Primeiro ponto: o tal “tempo acelerado” é o predominante na atualidade. As tecnologias digitais nos convidam a viver em quinta marcha, e qualquer tentativa de desaceleração é um movimento de resistência (a educação tem um papel importante nesse aspecto, mas a gente fala disso mais adiante). Daí o segundo ponto: áudios e vídeos em velocidade 2 fazem parte desse “entorno cultural”, de uma rapidez que já existia antes deles e que certamente encontrará outros recursos para ampliar a aceleração.

Terceiro ponto: na comunicação, tempo acelerado equivale a excesso de informações. A produção responde à demanda por aceleração e isso também é um problema – nosso quarto ponto: em busca do real time, conteúdos jornalísticos se tornam cada vez mais aligeirados. No universo do fast journalism, nem sempre a melhor informação, a mais completa, checada, precisa e contextualizada é a mais rápida.

Aliás, como identificar, num oceano de conteúdos, aqueles que reúnem as características desejáveis? O quinto ponto é a infoxicação, junção de informação e intoxicação. Navegamos por ambientes em que informação de boa e má qualidade se misturam, evidenciando que desinformação e fake news possuem uma relação bastante próxima com a aceleração do tempo. Eis o sexto ponto – e ainda não chegamos aos áudios e vídeos acelerados…

Quanto a eles, pode-se partir da afirmação de Bourdieu no livro Sobre a Televisão: existe um elo entre o pensamento e o tempo. Na urgência, não se pode pensar. Que belo sétimo ponto! O sociólogo francês se referia aos ritmos televisivos, em um mundo pré-redes sociais, mas a constatação hoje talvez seja ainda mais verdadeira.

É certo que há determinados comportamentos leitores – que, num sentido amplo, podemos associar a outras mídias além da escrita – que se baseiam na velocidade. Ingleses e americanos falam em skim e scan como estratégias para, respectivamente, encontrar rapidamente as ideias principais ou informações específicas em um texto. Perceba a sutileza: são procedimentos para usos específicos, e não para a compreensão detalhada do que se lê/escuta/vê.

Também importa a frequência. Oitavo ponto: para a neurociência, o consumo corriqueiro de conteúdos acelerados favorece a produção de um estado de urgência cerebral. A essa condição se ligam tanto episódios ansiosos quanto a sensação de fadiga mental – nossa capacidade de processamento de informações não consegue acompanhar a quantidade de conteúdo que estamos recebendo.

E a fadiga mental – nono ponto – tem a ver com o consumo de conteúdos menos confiáveis. No já clássico “Fake news. It’s complicated”, Claire Wardle defende que a sobrecarga informacional também nos deixa mais vulneráveis e influenciáveis. Quando estamos cansados, nervosos e com medo, o pensamento crítico reflui. Terreno fértil para a desinformação.

O décimo e derradeiro ponto é que há alternativas. Entender o impacto da tecnologia em nossas vidas é uma das tarefas da educação midiática. É coisa nova que possivelmente você (nem ninguém) teve na escola – e aí está uma parte do drama. Esse ramo da educação se dedica a nos levar a refletir sobre como nos relacionamos com as mídias. Quanto à aceleração de áudios e vídeos, um entendimento importante é que estamos nos deixando levar pelo ritmo frenético das telas e suas redes. É o que queremos? Se sim, queremos isso o tempo todo?

Construir competências para uma relação saudável com a mídia inclui o desenvolvimento da maturidade. No contexto em que usamos essa palavra, tem a ver com a capacidade de se ligar às mídias e de se desligar delas, usando-as com propósito (pesquisa? conexão com outras pessoas? entretenimento com intervalo definido?). Finalizada a atividade, você sai e vai tocar a vida off-line – anteriormente conhecida apenas como “vida”.

A alfabetização ou letramento midiático (media literacy) também entra em cena, na medida em que entender o que é a desinformação e como se precaver dela é mais uma competência necessária. Assim como entender a relação entre infoxicação e o processo de aceleração social do tempo. Talvez seja pedir demais considerar tudo isso ao ouvir o próximo áudio acelerado… Nomear o problema não significa necessariamente invalidar o recurso, mas atuar no sentido de uma autorregulação em que possamos decidir em que hora embarcar e deixar o tempo veloz das tecnologias digitais.

 

 

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Rodrigo Ratier

Jornalista especializado em educação e professor da Faculdade Cásper Líbero. É um dos fundadores do curso online Vaza, Falsiane contra notícias falsas. Pesquisa fake news e desinformação

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