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Lula Marques/Agência Brasil

set 8, 2023 | destaques, notícias

Entre a demanda e os cuidados: a conectividade nos territórios indígenas e quilombolas

Lula Marques/Agência Brasil
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A conectividade nas terras remanescentes de quilombos e territórios indígenas foi objeto de um projeto de Lei apresentado no último 14 de agosto na Câmara dos Deputados. De autoria do deputado Valmir Assunção (PT-BA), a proposta inclui o acesso gratuito à banda larga na lista de direitos da população indígena (previstos na Lei 6001/73) e a inserção de programas e projetos voltados à comunidade indígena e quilombola dentro do Fundo de Universalização de Serviços de Telecomunicações (Lei 9998/2000).

O projeto de Lei apresentado prevê ainda que o acesso à internet seja considerado no processo de reconhecimento e titulação de terras remanescentes de quilombos e também de terras indígenas.

O Censo Demográfico 2022 reconheceu que o Brasil possui 1.327.802 brasileiros que se declaram quilombolas, e que aproximadamente 12,5% dessa população habitam em um dos 494 territórios oficialmente delimitados como áreas de antigos quilombos. 

O mesmo levantamento apontou que a população indígena do país chegou a 1.693.535 pessoas, e, conforme o IBGE, pouco mais da metade (51,2%) da população indígena está concentrada na Amazônia Legal. Do total de 630.041 domicílios com pelo menos um morador indígena, 137.256 estavam localizados dentro de Terras Indígenas (21,79%). 

É sabido que o acesso à internet é bastante desigual pelo país, e mesmo em grandes centros urbanos há diferença de disponibilidade de serviços entre as regiões centrais e periféricas. Mesmo com o lançamento da tecnologia 5G em novas cidades a cada mês, há ainda uma parcela de brasileiros que dispõe de acesso à internet via banda larga móvel em velocidades inferiores a 10 Mbps. Relatório da consultoria Opensignal diz que 20,7% dos usuários de celular têm esta velocidade média de acesso. 

Roraima, Minas Gerais e Amazonas são os estados com maior contingente utilizando banda larga móvel com velocidade inferior a 10 Mbps, são 29%, 27,2% e 26% dos usuários, respectivamente. Apenas 6,8% dos brasileiros que usam internet móvel têm uma qualidade considerada “excelente” de interação com vídeo, o que quer dizer que assistem conteúdos em altíssima definição sem travamentos. 

Comunicação, formação e organização

“Hoje, a tecnologia ajuda muito a gente ter essa comunicação rápida. Ela é uma das ferramentas que a gente mais utiliza dentro dos territórios indígenas. Quando tem alguma situação, a gente consegue ter essa comunicação”, relata Tiago Karai Tataendy, da aldeia Kalipety localizada no território Tenondé Porã, que fica na região de Parelheiros, extremo Sul da cidade de São Paulo. Para ele, pertencente ao povo Guarani Mbyá, é importante uma ferramenta que possibilite que a comunidade seja assistida “do lado de fora” quando é necessário, “e muito mais ainda sobre as questões de conflitos dentro dos territórios”.

Tiago Karai ressalta a possibilidade de formação por meio de trocas com outros povos indígenas, produção e divulgação de aspectos culturais, além de manter contato com parceiros e acompanhar mais rapidamente a agenda política. “Ela é uma ferramenta fundamental sim para as nossas vidas, e hoje a gente usa muito até para se organizar”, reforça.

As possibilidades de formação e de articulação política proporcionadas pelo acesso à internet também foram destacadas por Nilson José dos Santos, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ-PI). 

Nilson conta que eles, entre 2019 e 2020, passaram por situações de enfrentamentos com grandes empreendimentos no território e “a nossa salvação foi esse meio de acesso à internet, à banda larga, que facilitou a gente se comunicar com os órgãos intervenientes, com as empresas que empreendiam em torno do território, para que a gente pudesse negociar para que a comunidade não ficasse no prejuízo”.

“A gente vê que a internet hoje não é somente uma infraestrutura por si só, ela é uma infraestrutura mais do que fundamental para o desenvolvimento econômico e também uma ferramenta que permite uma maior difusão da cultura, da educação, da saúde e também dos serviços sociais. Hoje, principalmente no período da pandemia, muitas comunidades necessitam desse meio de comunicação e não tinham”, relata Nilson.

Acesso ao mundo virtual requer cuidados

Se a demanda por acesso à banda larga nos territórios é real, existe também a preocupação sobre o impacto que o acesso ao mundo virtual pode acarretar na cultura local e nas tradições dos povos originários. Ambos, Nilson José dos Santos e Tiago Karai, apontam a necessidade de cuidados a serem tomados. 

“Há dias que você vê muitos pais com os filhos, assim, a filhinha brincando e o pai e a mãe no celular. E muitas vezes o contrário, o pai e a mãe estão na fogueira e a criança está lá com o celular” narra Tiago Karai.

Se o acesso à internet tem seus benefícios, também apresenta problemas, afastando as pessoas da sua vivência real. “Você pode estar entrando num mundo que é um mundo de ilusão, que é o mundo virtual, onde você tem tudo ali mas ao mesmo tempo, quando você desliga, você não tem nada”, alerta a liderança Guarani Mbyá. 

Tiago Karai defende que seja necessário um trabalho anterior “que é trazer tanto a parte boa de ter essa ferramenta, mas também trazer esses pontos negativos, que é, às vezes, você ficar preso no mundo virtual. As crianças, o modo de vida, o comportamento podem mudar e até a desvalorização da língua, da cultura, entre outras coisas”.

Em articulação com parceiros, incluindo o Coletivo Intervozes, a aldeia Kalipety busca encontrar formulações que diminuam esses impactos negativos trazidos pela conectividade, como, por exemplo, a restrição de horários de acesso. “O que tem que ser respeitado é o aspecto cultural e também da tradição. E respeitar o modo de vida que a gente tem nas comunidades, porque coisas novas são muito chamativas”, pontua Tiago Karai.

Tiago Karai informa que foi feito um trabalho dentro do território de trazer pessoas que pensam a internet e discutir como não tirar esse direito mas deixar algumas regras dentro das comunidades. Como cada comunidade pensa o uso dela? A partir de diversas oficinas dentro das comunidades, a comunidade da aldeia Kalipety chegou a um consenso sobre ter algum tipo de controle, minimamente, pensando horários e tipos de restrições.

Preocupação semelhante traz o membro da coordenação estadual das comunidades Quilombola do Piauí, Nilson José dos Santos, para quem a internet “pode potencializar como também pode influenciar o distanciamento de algumas culturas da própria comunidade. Tem que ter, eu creio, uma regulamentação, uma forma de educação de como você acessar esse meio da internet ao seu favor”.

Para Nilson, a conscientização do uso é fundamental para que os aspectos negativos não se sobreponham aos aspectos positivos que a conectividade traz aos territórios quilombolas. 

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