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acervo pessoal

fev 14, 2022 | pontos de vista

Como a Plataforma 9¾ e as escadarias mágicas de Hogwarts podem nos ajudar a entender desinformação?

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Eu gosto muito de pensar no mundo digital através de metáforas espaciais. Acho que refletir sobre o espaço digital nos ajuda a pensar pralém de mídias e práticas já existentes. O espaço digital não é apenas o que aparece no google, ou a timeline do instagram, ou os links que chegam em nossos grupos de whatsapp. Não é apenas cada uma dessas coisas, mas, ao mesmo tempo, é uma somatória de todas elas, dos fluxos comunicacionais que se estabelecem e, quem sabe, de espaços vazios que ainda podem ser ocupados a partir de outras lógicas.

Mas, bom, abstrações à parte, como uma boa adolescente dos anos 2000, cresci impregnada pelo universo de Harry Potter. E não é que reassistindo à saga, recentemente, achei que ela tem ótimas metáforas para falarmos sobre circulação (des)informativa? Pode ser apenas minha mente de pesquisadora já avariada, mas eu acho que existem paralelos muito interessantes. Curte uma aventura mágica e a discussão sobre desinformação? Então pega sua vassoura e segura firme pra acompanhar as duas analogias entre o universo de Harry Potter e desinformação que vamos fazer nesse texto.

 Plataforma 9¾

Impossível esquecer da icônica plataforma secreta para acesso ao trem que leva a Hogwarts. Para chegar até ela é preciso atravessar uma parede de tijolinhos que, aparentemente,não leva a lugar nenhum. Ou seja, o que aparentemente é um lugar de chegada – “ah, legal, vou encostar nesse muro e esperar o trem se aproximar”-, na realidade mostra ser um portal para um outro universo. Um universo acessível só para aqueles que detêm um determinado conhecimento.

E não é que essa simbologia da Plataforma 9¾ pode nos ser útil também para pensar as chamadas plataformas digitais, como o Facebook, o Youtube e o Instagram, por exemplo? Isso porque não é à toa que esses espaços ficaram conhecidos como ‘plataformas’.

A palavra plataforma vem do Francês, ‘plate-forme’, forma plana (olha a pilastra de Harry Potter aí, bem plana!). Esse é o imaginário que as plataformas desejam construir sobre si próprias, como espaços “abertos, neutros e com arranjos igualitários, que prometem suporte pra quem fica sobre elas”, como defende Gillespie. Pois é exatamente questionando o que se esconde por trás dessa ideia que precisamos começar.

Essa ideia de plataforma tende a esconder o papel desses atores como intermediários e, portanto, a forma como eles influenciam a circulação informativa. Ou seja, as plataformas digitais, assim como em Harry Potter, não são pontos de chegada, mas sim portais que nos levam a outros lugares.

É dessa ideia de que as plataformas seriam apenas um local de acesso direto a algo que nascem os discursos sobre uma suposta desintermediação proporcionada pela internet, em que haveria uma suposta comunicação mais direta do que antes. Mas, não seriam essas plataformas, suas lógicas de organização e funcionamento, seus interesses comerciais e sociais também intermediadores?

Tanto elas são intermediadoras que só se pode ter acesso a elas com determinados tipos de conhecimento. Experimente chegar na estação de King’s Cross, em Londres, sem saber onde fica a plataforma 9¾ ou como acessá-la. Ou tente usar o Instagram Stories sem saber detectar o uso de filtros ou sem conhecer a simbologia secreta de cada tipo de reação a um story postado. Tanto em um caso, quanto em outro, há códigos de acesso para você entender e usar plenamente o que essas plataformas oferecem. E essas regras não são majoritariamente definidas por nós, meros usuários, estão nas mãos de quem produz e comercializa esses espaços.

Aliás, essas pessoas que estão no controle podem, inclusive, decidir que não querem que determinadas pessoas estejam nas suas plataformas. Daí chegam as sanções e os processos de ‘deplataformização’ sofridos pelo ex-presidente Donald Trump, por exemplo, mas também por Harry e Rony, que perdem acesso temporariamente ao trem para Hogwarts no segundo episódio da saga (Harry Potter e a Câmara Secreta) depois de terem as entradas bloqueadas por um forte feitiço.

Portanto, esses novos mediadores, as plataformas, terão papel mais que essencial na definição do que e de quem pode ou não pode dentro de seus espaços, de quais são as regras a seguir e de quais as punições que podem ser aplicadas em caso de violações.

Ah, só lembrando que, em Harry Potter, não por acaso, quem não enxerga e não percebe nada do que acontece em torno da plataforma 9¾ são justamente quem? Os trouxas!

Bom, nós que não somos trouxas nem nada, conseguimos, é claro, acessar a plataforma, pegar o trem e chegar até Hogwarts. É lá que está guardada a segunda chave que pode nos ajudar a entender a circulação (des)informativa.

 

As escadas mágicas de Hogwarts

Pois bem, chegamos ao castelo, mas todos sabemos que para acessar qualquer sala de aula ou dormitório é preciso ficar atento porque as escadas estão sempre em movimento, mudando seus pontos de chegada e de partida. E se imaginarmos esse grande castelo como uma metáfora do espaço digital? Cada uma das suas salas e salões seria, por exemplo, um ambiente comunicacional, como um site de um jornal, uma rede social ou um aplicativo de mensagem. A questão é que as conexões entre eles estão sempre mudando.

Essas escadarias que estão sempre em movimento entre diferentes lugares me lembram a ideia do sistema midiático híbrido, defendida pelo pesquisador Andrew Chadwick. Segundo ele, o ambiente digital se conformaria a partir da interação constante entre diferentes lógicas de mídias (velhas e novas) e seria dessa interação que emergiria a novidade do digital. A questão é que, para Chadwick, as relações entre esses diversos ambientes não se dão sempre na mesma direção ou sentido, podendo construir diversos caminhos informativos.

Ou seja, tentando tornar mais concreto, pensemos no nosso uso das mídias digitais. Às vezes a gente recebe uma notícia em um grupo de WhatsApp e vai ler. Curte o texto e acaba enviando para uma terceira pessoa por DM do Instagram. Em outras ocasiões a gente vai direto no site de um jornal e publica esse link no Twitter, por achar interessante compartilhar. Alguém pode pegar o link deste tweet e compartilhar em um grupo do Telegram, por exemplo. O fato é que, primeiro, estamos sempre passando de uma plataforma a outra enquanto usamos a rede e, segundo, esse caminho que fazemos não se estabelece sempre da mesma forma. Ou seja, para que uma notícia chegue no WhatsApp, ela não tem necessariamente que passar pelo Twitter. Os caminhos não são fixos. Assim como para chegar no dormitório da Grifinória nem sempre é necessário passar pela sala da professora McGonagall.

Portanto, esses caminhos cambiantes nos mostram que há uma série de possibilidades de caminhada no ambiente digital. Mas, não nos enganemos, é claro que sempre há caminhos preferenciais. Aqueles que já sabemos que funcionam melhor, são mais rápidos e/ou efetivos. Se precisamos sair às escondidas à noite em Hogwarts, há de se evitar os caminhos por onde mais circula o rabugento Mr. Filch. Se quer ir à Floresta Proibida (ok, essa não é acessada pelas escadas), é prudente passar na casa de Hagrid antes para contar com seus conhecimentos da área.

E no mundo digital não é parecido? O melhor exemplo é a já conhecida e muito comentada “WhatsApp-to-Youtube pipeline”, ou seja, o fato de que a maior parte dos links que circulam no WhatsApp levam ao Youtube, há um caminho preferencial entre as duas plataformas. Podemos pensar também nos caminhos a serem evitados, por exemplo, por conta de estratégias de moderação de conteúdo. Afinal, não é por isso que muitas pessoas que disseminam discursos que têm sido punidos em algumas plataformas vão em busca de outros espaços – e até da criação de novos lugares – onde possam postar mais “livremente”?

Portanto, o fato desses caminhos estarem sempre mudando não significa que forçosamente todo cidadão online passará por todas as escadas. Aos poucos, numa mistura da própria estrutura da rede com os padrões de comportamento dos usuários, caminhos preferenciais vão se construindo, assim como outros tendem a ser evitados, na medida do possível.

Bom, estão aí duas de provavelmente inúmeras analogias que podemos fazer entre o espaço digital e o universo de Harry Potter. Espero que elas não atrapalhem a fruição da saga por vocês e, aliás, se tiver outra ideia de analogia boa entre as duas coisas, “mandaí”! Eu já estou doida pra reassistir e reler todos os episódios da história com novos olhos.

 

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Nina Santos

Pesquisadora no INCT.DD e Carism/Université Paris II. Interessada pela disseminação de informação nas plataformas digitais e seus impactos políticos.

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