A campanha pela aprovação da tese do marco temporal, em votação no Supremo Tribunal Federal (STF), envolve informações suspeitas, com autoria desconhecida, e se utiliza de distorções históricas em relação aos povos indígenas. A tese considera que os indígenas só teriam direito à terra se estas estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Uma das informações suspeitas foi flagrada pelo Fakebook.eco, iniciativa de checagem do debate ambiental mantida pelo Observatório do Clima. Um anúncio publicado no jornal Estado de S. Paulo em 22/8 informava a existência de um estudo apontando impacto negativo de R$ 1,95 bilhão em Mato Grosso com a ampliação ou criação de terras indígenas, no caso de rejeição do marco temporal.
A equipe do Fakebook.eco tentou buscar autores e a íntegra do estudo, mas ninguém assumiu a autoria. O Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (IMEA) informou que se tratava de um trabalho “confidencial”. Organizações ambientalistas do Mato Grosso contestaram as informações publicadas: “Hoje, de acordo com dados da Funai (Fundação Nacional do Índio), Mato Grosso conta com pelo menos 31 processos de reivindicação de reconhecimento de terras indígenas e 16 com o status formal ‘em estudo’, sem qualquer informação sobre seu perímetro. Ou seja, os números voluptuosos propagandeados pelo jornal são mera especulação”, diz a nota de repúdio do Observatório Socioambiental de Mato Grosso.
Outra checagem realizada pelo Fakebook.eco rebate a perspectiva de que há “muita terra para pouco índio”, bastante utilizada pelo atual governo, apoiador e difusor da tese temporal e que afirma, frequentemente, que não demarcará novas terras.
Estudo publicado em 2019 por 14 pesquisadores brasileiros e estrangeiros na revista científica Land Use Policy mostra que 97.456 grandes propriedades rurais ocupam 1,8 milhão de km2, que correspondem a 21,5% do território nacional. As Terras Indígenas abrangem cerca de 13% do território (1,1 milhão de km2) e abrigam 572 mil pessoas, segundo o Censo de 2010 do IBGE. Comparativamente, cada grande proprietário rural é dono em média de 18,7 km2, enquanto cada indígena de 1,9 km2, uma proporção quase 10 vezes menor.
Outra informação falsa disseminada pelo presidente Jair Bolsonaro, desta vez na abertura da Assembleia Geral da ONU, no ano passado, foi que os indígenas e caboclos eram os principais responsáveis pelas queimadas na Amazônia. O pesquisador Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, desmentiu a informação. Segundo ele, mais da metade da área queimada na Amazônia se refere à expansão da atividade agropecuária, sendo a maioria feita por grandes proprietários.
Para a liderança indígena e assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Marcos Sabaru, o marco temporal é “uma máquina de destruir história e desvirtuar a informação”. Após três semanas em Brasília no acampamento com mais de 6 mil indígenas que acompanham o julgamento, Sabaru avaliou que a desinformação ajuda a reforçar argumentos usados pelos ruralistas para defender a tese. A mobilização de informações falsas articuladas com argumentos de defesa de teses políticas e jurídicas polêmicas é uma das maneiras de como a desinformação afeta a luta por justiça social.
Outras narrativas distorcidas relativas aos indígenas, fruto da construção histórica brasileira, ainda pairam em determinados contextos, explicou a gerente sênior de Povos Indígenas e Políticas Sociais da CI-Brasil, Renata Pinheiro, o que dá respaldo para construções jurídicas como a tese do marco temporal.
“Como antes de 1988 não havia o reconhecimento da diversidade cultural indígena, a fundação do país se dá a partir de uma política de integração nacional e assimilação cultural que exterminou a maioria dos povos originários. Suas crenças e rituais foram demonizados, os indígenas foram considerados preguiçosos porque não aceitavam ser escravizados, e foram vistos como uma ameaça à soberania nacional porque ocupam terras estratégicas; além disso atrapalham o desenvolvimento já que suas terras não podem ser abertas para interesses econômicos”.
Acompanhe a votação do marco temporal através das redes de lideranças indígenas:
Vale a Leitura
Livro: A Terra dos mil povos – História indígena do Brasil contada por um índio, Kaká Werá Jecupé – editora Peirópolis