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Pontos de vista

jan 20, 2025 | Destaques, Pontos de Vista

Bravo, Fernanda Torres, Bravo! “Ainda Estou Aqui”, inteligência artificial e a eternidade da arte

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No primeiro domingo do ano (05), a atriz Fernanda Torres fez história ao se tornar a primeira personalidade brasileira premiada com o Globo de Ouro em uma categoria individual, levando para casa a estatueta de “Melhor Atriz em Filme de Drama” pela obra “Ainda Estou Aqui”, que retrata a inabalável resiliência da advogada e ativista Eunice Paiva frente ao desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, raptado e assassinado pelos militares durante o regime ditatorial brasileiro.

De maneira poética, o feito da artista ocorre quase 26 anos após a sua mãe, Fernanda Montenegro, subir ao palco do mesmo Beverly Hilton Hotel, também na companhia do diretor Walter Salles, em meio à coroação da obra “Central do Brasil” como o “Melhor Filme em Língua Estrangeira” de 1999 — período em que a grande dama da dramaturgia nacional recebeu uma indicação ao Oscar de “Melhor Atriz”, sendo superada, de forma controversa, pela estadunidense Gwyneth Paltrow.

Com a indústria cinematográfica sofrendo cada vez mais os impactos do desenfreado emprego da inteligência artificial (IA), temática esta que permanecerá em voga nos mais variados âmbitos ao longo do ano de 2025 e que se faz presente em tal nicho desde a confecção de roteiros e o aperfeiçoamento de efeitos visuais até a recriação digital de pessoas vivas ou já falecidas, a atuação de Fernanda Torres se torna ainda mais relevante por destacar o elemento de humanidade que nos une, igualmente presente em algumas de suas recentes declarações.

Além do primor técnico em meio a criações sintéticas de qualidade e originalidade questionáveis, o longa-metragem que protagoniza detém um enorme valor histórico, pois constitui um indispensável lembrete das atrocidades praticadas no decorrer da ditadura nacional, afixado à memória coletiva a fim de impedir que estas venham a se repetir.

Ao rememorar a idêntica passagem da matriarca pelo caminho que agora percorria, Torres enfatizou, em seu discurso, que aquele instante representava uma “uma prova (de) que a arte pode perdurar pela vida, mesmo em momentos difíceis, como os que esta incrível Eunice Paiva […] passou”, acrescentando que “a mesma coisa […] está acontecendo agora no mundo com tanto medo. E este é um filme que nos ajudou a pensar em como sobreviver em momentos duros como este”.

Palavras precisas para descrever uma conjuntura global marcada pela intolerância aos estrangeiros e aos grupos minoritários e pela radicalização política, maximizadas nas redes sociais por algoritmos que prestigiam conteúdos odiosos e de desinformação ao alvedrio das big techs.

Reverter a lógica do jogo e utilizar esse locus digital como um espaço de resistência se torna um imperativo. As engrenagens que ampliam o alcance das postagens celebratórias da conquista de Fernanda Torres servem a tal propósito e ofertam ao mundo um vislumbre do orgulho brasileiro pelo sucesso da conterrânea, a despeito dos repetidos sucateamentos promovidos ao segmento cultural do país nos últimos anos. É como a própria atriz frisou em uma ocasião recente, “nós somos cegos para a nossa própria cultura, mas ao mesmo tempo queremos que o mundo veja o que eles estão perdendo”.

Diante da pasteurização de conteúdo resultante do uso das ferramentas tecnológicas, a preservação das idiossincrasias culturais e linguísticas também se revela oportuna. Como contraponto à homogeneidade típica dos países do Norte Global, emerge o panorama da decolonialidade digital, que, ao preconizar a concepção e o desenvolvimento de modelos atentos às particularidades locais e regionais, pode buscar inspiração na própria trajetória recente do cinema.

Vencedor de quatro categorias (melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro original e melhor filme internacional) no Oscar de 2020, o filme sul-coreano “Parasita”, de Bong Joon-ho, constitui um marco da gradual — embora ainda incipiente — ampliação do olhar de Hollywood para a representatividade. Quando recebeu o Globo de Ouro em tal ano pelo “Melhor Filme em Língua Estrangeira”, o cineasta proferiu um poderoso discurso em seu idioma original, declarando aos presentes que “depois de superarem a barreira de uma polegada de altura das legendas, você serão apresentados(as) a muitos outros filmes incríveis”.

“Ainda Estou Aqui” é um deles e perpetua o belíssimo trajeto pavimentado por “O Pagador de Promessas” (1962), “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), “Terra em Transe” (1967), “O Quatrilho” (1995), “Central do Brasil” (1998), “Abril Despedaçado” (2001), “Cidade de Deus” (2002), “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), “O Som ao Redor” (2012) e “Que Horas ela Volta?” (2015), dentre tantas outras produções nacionais de renome. A vitória de Fernanda Torres guarda uma poderosa simbologia e a transporta, assim como a arte por ela mencionada, à eternidade, perpetuando o legado de sua mãe.

Em entrevista ao canal Globo News para comentar o acontecimento, uma emocionada Fernanda Montenegro concluiu a sua fala relatando que, com a obra, “renasce essa mulher de uma dimensão de brasilidade poucas vezes alcançada”, e exclamando um doce “bravo, minha filhinha, bravo!”.

Não existe melhor desfecho possível para este texto, senão a repetição da reverência: bravo, Fernanda Torres, bravo!

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Milton Pereira de França Netto

Professor de Direito Digital e Advogado. Doutorando em Direito, com estudos direcionados à inteligência artificial, pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e pela Universidade de Sevilha (Espanha). Mestre em Direito pelo Centro Universitário Cesmac. Pesquisador, na linha de “Inteligência Artificial e Social”, do Legal Grounds Institute.