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Pontos de vista

set 29, 2025 | Destaques, Pontos de Vista

Aldeia Global, Amazônia e o Direito do Futuro: tecnologia, Tekoa e COP30

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A promessa da aldeia global de McLuhan, que via a internet como espaço de conexão entre culturas, revela-se frustrada diante do risco de a Amazônia ser tratada como sandbox tecnológica de corporações globais. O que deveria ser território de cuidado se converte em ambiente de experimentação de inteligências artificiais (IA), satélites e sensores, frequentemente alheios às epistemologias dos povos da floresta. O saber ancestral, em vez de reconhecido como ciência viva, corre o risco de ser reduzido a dado pré-metrificado e privatizado, a serviço de interesses comerciais.

A Amazônia se revela, além de importante objeto de disputas políticas, como território de intersecção epistêmica entre mundos aparentemente conflitantes: o da tecnologia, que avança a passos acelerados com IA, sensores e satélites; e o da inteligência ancestral, cosmologia, plantas medicinais e filosofia, os quais há milênios coabitam esse bioma por meio de práticas não-hegemônicas de cuidado, relação e pertencimento.

Não basta atualizar instrumentos normativos. É preciso reconhecer múltiplas formas legítimas de produzir conhecimento, regular relações e construir vínculos. Isso implica romper com a visão colonial de progresso e abrir espaço para racionalidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas, sem que sejam reduzidas a “insumos” para algoritmos. O futuro do Direito passa pela valorização da ancestralidade, em diálogo com a inovação tecnológica.

Por um Direito Digital Sustentável

Historicamente, a ideia de progresso na Amazônia serviu mais à exploração do que à proteção de povos e territórios. Hoje, a tecnologia tampouco pode ser vista como redentora. O caminho está em reconhecer que as culturas da floresta seguem vivas, recriando-se apesar de violências históricas. Seus povos não aceitam mais ser objetos de estudo: reivindicam protagonismo na produção de ciência e na definição de rumos para o uso da tecnologia.

Esse reposicionamento exige um Direito Digital Sustentável, aberto à Amazônia profunda e às epistemologias originárias. Não se trata de extrativismo de dados, mas de governança participativa, respeito à autodeterminação informacional e valorização de patrimônios culturais, como estabelece a Constituição nos artigos 216 e 225. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever de preservar o patrimônio cultural tornam ilegítimos quaisquer projetos tecnológicos que desconsiderem a participação das comunidades afetadas.

Nesse contexto, princípios como o Teko Porã — harmonia e interdependência entre todos os seres — oferecem referenciais para um modelo normativo de convivência equilibrada entre ecossistemas naturais, digitais e sociais. O Direito brasileiro, já orientado pela busca de equilíbrio em situações de assimetria, deve agora aplicá-lo ao campo tecnológico, garantindo inovação responsável, proteção ambiental e justiça climática.

A dimensão digital precisa ser incorporada ao debate climático: fluxos de dados de povos originários, imagens e códigos sobre seus territórios não podem ser capturados por interesses privados. A proteção jurídica deve incluir direitos coletivos, governança inclusiva e salvaguardas contra vigilância e extrativismo digital.

A oportunidade da COP30

Como alertam lideranças indígenas, pensar o futuro exige mobilização coletiva. A COP30, realizada em território amazônico, é uma oportunidade histórica para reposicionar globalmente o debate: não como fórum de promessas vagas, mas como espaço para afirmar a Amazônia — e outros ecossistemas sub-representados — como centros de inteligência para o equilíbrio planetário.

Esse Direito do Futuro precisa ser intergeracional, intercultural e intertecnológico. Intergeracional, porque decisões sobre IA, dados e meio ambiente impactam diretamente as próximas gerações. Intercultural, porque saberes ancestrais são ciência legítima, apta a dialogar com marcos jurídicos globais. Intertecnológico, porque não recusa a inovação, mas a antropofagia — absorvendo-a criticamente, adaptando-a às necessidades locais e às vulnerabilidades da chamada “Maioria Global”.

Não se trata de adaptar a floresta às lógicas do Vale do Silício, mas de inverter a direção: deixar que a floresta, com sua sabedoria milenar, ensine novos parâmetros de regulação digital e ambiental. O Direito, nesse cenário, deixa de ser apenas campo de disputa e pacificação social para tornar-se espaço de construção compartilhada de sentidos, onde proteger a floresta significa também assegurar dignidade coletiva, soberania socioterritorial e justiça epistêmica.

Mais do que reação a crises, o Direito do Futuro deve ser capaz de antecipá-las e mitigá-las, articulando inovação, sustentabilidade e desenvolvimento econômico. A COP30 é o momento para consolidar esse paradigma jurídico e político, que não recusa a tecnologia, mas a reorienta em direção ao bem viver, ao equilíbrio ecológico e ao respeito às diversidades culturais.

Se a aldeia global falhou em entregar inclusão e equidade, a Tekoa — espaço sagrado de vida indígena, regido por costumes e saberes próprios — pode inspirar novos modelos de organização social e digital, baseados na reciprocidade, na escuta intergeracional e no pertencimento ao território. A floresta não pode ser sandbox, mas reconhecida como matriz de futuros possíveis, onde o Direito se afirma como instrumento de reconciliação entre tecnologia e ancestralidade, presente e futuro, humanidade e natureza.

Nesse sentido, a inteligência artificial, quando articulada a marcos de governança ético-jurídicos, pode se tornar instrumento de inclusão e não de exclusão. A lógica da floresta, que reconhece a interdependência entre espécies e sistemas, pode orientar modelos de IA voltados à equidade, em contraste com arquiteturas tecnológicas globais que reproduzem desigualdades e colonialismos digitais. 

A COP30, realizada em solo amazônico, deve se firmar como espaço não apenas de compromissos climáticos, mas de pactos sobre a própria arquitetura da tecnologia do futuro, onde algoritmos aprendam com os princípios da diversidade e da reciprocidade, em vez de apenas com a lógica extrativista dos dados.

Assim, pensar o Direito do Futuro a partir da Tekoa e da Amazônia implica reconhecer que a normatividade não se limita a leis positivadas, mas também se expressa em cosmologias, saberes tradicionais e formas de vida. Ao integrar esses referenciais, o direito pode mediar conflitos entre inovação e proteção ambiental e cultural, promovendo governança digital plural e sustentável. A tecnologia, portanto, se traduz em linguagem da floresta, acolhendo o tempo, a escuta e a memória coletiva como fundamentos para novas institucionalidades.

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Guilherme Mucelin, Ricardo Antunes, Christine Albiani e Bruna Strahl

Guilherme Mucelin - Advogado.Doutor (com período de pesquisa na Universidade Nova de Lisboa) e mestre em Direito pela UFRGS.

Ricardo Antunes - Mestre em Ciência Política pela UFPA, bacharel em Direito, especialista em Direito, Políticas Públicas e Controle Externo pela Uninove/SP.Especializando em Ética em Inteligência Artificial( UFPB).

Christine Albiani - Advogada, especialista em Compliance Digital e Proteção de Dados, sócia da 4S Advocacia e LL.M. pela UFBA.

Bruna Strahl - Advogada. Especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública pela FMP/RS.

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