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África do Sul encara eleições permeadas de discursos violentos nas redes sociais

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Em meio a informações falsas sobre o processo eleitoral e o medo de violência política, cerca de 28 milhões de sul-africanos vão às urnas nesta quarta-feira (29). As eleições mais acirradas desde o fim do Apartheid, em 1994, são marcadas pela disseminação de desinformação sobre a imparcialidade da Comissão Eleitoral Independente da África do Sul (IEC, sigla em inglês) e sobre o próprio sistema de votação, aprofundando a polarização e desincentivando o voto.

“Essas narrativas estão fomentando o medo entre a população e criando desconfiança no processo eleitoral, a ponto de pessoas ou partidos políticos poderem decidir se revoltar ou invadir centros de votação se sentirem que foram prejudicados ou se seu candidato não ganhar a eleição. Há uma ameaça geral de minar a democracia nas eleições de 2024”, afirma Bulanda Nkhowani, gerente de Campanhas e Parcerias para a África na Digital Action, organizadora da Coalizão Global pela Justiça Tecnológica.

Entre o conteúdo que mais circula, de acordo com Nkhowani, está a falsa alegação de que a Comissão Eleitoral (IEC) já contabilizou votos – mesmo antes das eleições começarem – para o atual presidente Ramaphosa na província de KwaZulu Natal. A IEC também é alvo de desinformação com narrativas de que permitiu que estrangeiros votem ou que ela instaurou novas regras para o pleito sem o devido processo. 

“Outras narrativas incluem falsas alegações de captura de estado pelos EUA e que Donald Trump endossou o partido MK. Ou que, se alguém não votar, seu voto é automaticamente alocado ao partido governante ANC”, acrescenta a gerente de campanhas para o *desinformante. A falsa alegação de que Trump estava apoiando o MK foi, inclusive, produzida por meio de inteligência artificial e compartilhada por Duduzile Zuma Sambudla, membro do partido MK e filha do ex-presidente Jacob Zuma. 

Nessa deepfake específica, “Trump” diz: “Saudações a todos os sul-africanos. Meu nome é Presidente Donald Trump. Eu exorto todos os sul-africanos a votarem no uMkhonto WeSizwe no dia 29 de maio”. A postagem, que foi compartilhada mais de 500 vezes e recebeu mais de mil curtidas na plataforma X, ainda estava no ar na sexta-feira passada, relata Bulanda Nkhowani.

ANC e MK são partidos que concorrem nessas eleições. No pleito sul-africano, os eleitores votam para formar o Parlamento que, por conseguinte, elegerá o novo presidente. Desde o fim do apartheid, o Congresso Nacional Africano (ANC) – partido do atual presidente Cyril Ramaphosa – está no poder. No entanto, é possível que, pela primeira vez, o partido não obtenha mais de 50% dos votos para garantir maioria no legislativo, o que coloca em xeque a reeleição.

O alto nível de desemprego, a crise de eletricidade que leva a apagões constantes no país, recorrentes cortes de água, o crescimento da violência e uma desconfiança generalizada com alegações de corrupção criaram o cenário para a queda de popularidade do ANC. A principal oposição é feita pelo partido Aliança Democrática (DA), que afirma que o país está em crise e defende privatizações e a desregulamentação da economia. Já o terceiro maior partido no parlamento, os Combatentes pela Liberdade Econômica (EFF), está à esquerda do ANC e tenta atrair eleitores com planos de redistribuir terras e nacionalizar setores da economia.

Especialistas indicam, no entanto, que a maior ameaça pode vir do recém-formado partido uMkhonto we Sizwe (MK), liderado pelo ex-presidente Jacob Zuma, que já foi um pilar do ANC. Zuma foi destituído pelo atual presidente Ramaphosa, em meio a acusações de corrupção e passou um tempo na prisão após ignorar uma ordem judicial. Por isso, o político foi impedido de concorrer nessas eleições, visto que a Constituição do país impede que qualquer pessoa com uma sentença de prisão de concorrer a um cargo. 

Violência política e eleições

Essa decisão, de acordo com o country brief da Global Coalition for Tech Justice pode afetar os resultados das eleições e incitar a violência no país. Em um vídeo amplamente compartilhado em março deste ano, o líder do MK, Visvin Reddy, ameaçou a integridade eleitoral dizendo: “se esses tribunais, que às vezes são capturados, impedirem o MK, haverá anarquia neste país. Haverá tumultos como você nunca viu neste país. Não haverá eleições”.

A incitação à violência – pela qual Reddy responde judicialmente – repercutiu em outros atos. O relatório da Global Coalition aponta que conteúdos similares circularam em redes como X e TikTok. “Um vídeo no TikTok, que foi removido, mostrava um homem vestindo uma camiseta do MK disparando uma pistola para as colinas, seguido por uma câmera que mostrava uma mesa com uma espingarda e rifles de assalto”, destaca o documento. 

Mas a violência não vem de hoje. Em 2021, quando Zuma teve prisão decretada por desacato, mais de 300 pessoas morreram em motins em KwaZulu-Natal. Mais de 60 pessoas foram acusadas por instigarem a violência e, em 2024, quando foram ao tribunal, apareceram vestindo a insígnia do MK. A Comissão de Direitos Humanos da África do Sul confirmou que as plataformas de redes sociais desempenharam um papel fundamental na violência por meio da amplificação de publicações que instigavam essas ações.

“Essas narrativas que atacam a independência do Tribunal Constitucional são reminiscentes das narrativas que se desenrolaram tanto online quanto offline desafiando a legitimidade de sua condenação por desacato ao tribunal, que levou a motins violentos em julho de 2021 para impedir sua prisão”, disse Sherylle Dass, Diretora Regional dos escritórios de advocacia pública Legal Resources Centre (LRC) para a Global Coalition, acrescentando que “há um risco real de que chamadas semelhantes por meio de campanhas online concertadas possam resultar em distúrbios, especialmente em KwaZulu-Natal.”

O MK também acumula acusações de fomentar divisões tribais aprofundando o desafio da imigração no país. Mas não só. Outros partidos têm usado a migração como um dos temas centrais da campanha, muitas vezes incitando a violência. O argumento de que os problemas sociais da África do Sul estão ligados aos imigrantes vem despertando declarações xenofóbicas e o compartilhamento de desinformação. Por exemplo, o líder do ActionSA, Herman Mashaba, fez uma publicação em dezembro de 2023 alegando que estrangeiros que administram lojas de conveniência estavam as utilizando como canais de drogas ilícitas, destruindo pequenos negócios e perturbando comunidades inteiras.

“Estamos percebendo que a retórica anti-imigrante está vindo de partidos políticos – particularmente os menores – e alguns, como a Aliança Patriótica, têm sido particularmente odiosos, como o líder dizendo que removerá tanques de oxigênio de estrangeiros doentes nos hospitais”, disse Yasmin Rajah, chefe dos Serviços Sociais de Refugiados em KwaZulu-Natal. “Não acho que as plataformas de redes sociais façam muito para conter o discurso de ódio. Parece que vale tudo na África do Sul”, acrescentou Rejah.

(In)ação das big techs

De fato, como apontou Rejah, as plataformas falharam em conter o discurso de ódio na campanha eleitoral. Pesquisas do Centro de Recursos Legais da África do Sul (LRC) e da Global Witness mostraram que o Facebook, o TikTok e o YouTube aprovaram anúncios com discursos que, por exemplo, incitavam a polícia sul-africana a matar estrangeiros e encorajavam a violência através da “força” contra migrantes. De dez anúncios – em inglês, afrikaans, xhosa e zulu – apenas um anúncio em inglês e afrikaans rejeitado pelo Facebook, todos os que estavam em xhosa e zulu foram aceitos, reforçando a dificuldade de moderação de conteúdo além do inglês.

Além disso, revelou a Global Coalition, para as eleições deste ano, as plataformas  Meta, TikTok e Google parecem ter implementado mais ou menos as mesmas políticas eleitorais que utilizaram em anos anteriores, com algumas atualizações. No entanto, relatórios mostram que as empresas não cumpriram suas obrigações em 2021.

As três big techs também assinaram um acordo voluntário com a Comissão Eleitoral da África do Sul (IEC) e o grupo da sociedade civil Media Monitoring Africa (MMA), comprometendo-se a trabalhar juntos para combater a desinformação e outros danos digitais antes das eleições – algo similar aos acordos firmados nas eleições de 2022 entre as plataformas e o Tribunal Superior Eleitoral no Brasil.

“O framework, que não é juridicamente vinculativo, visa combater a disseminação de desinformação e depende da boa fé dos participantes para trabalhar juntos e garantir eleições livres e justas. O acordo também incentiva as plataformas a implementarem suas próprias políticas relativas à remoção de conteúdo problemático, publicação de avisos consultivos sobre conteúdo prejudicial e à deslistagem de conteúdo. Termina na data em que os resultados das eleições são anunciados”, explica a Global Coalition.

Entre as medidas acordadas, as plataformas se comprometeram a auxiliar em programas de educação midiática e agir a partir de denúncias de desinformação através de sites como Real411.org, que as encaminha diretamente para a comissão eleitoral para avaliar os conteúdos e tomar as medidas necessárias. Apesar disso, há críticas de observadores sobre a também inação da IEC em reconhecer a possibilidade de violência e não agir contra determinadas narrativas.

Em relação às plataformas, organizações da sociedade civil da África do Sul reclamaram sobre a falta de abertura das empresas e de transparência em relação às ações realizadas no país. “No Brasil, Mianmar, Etiópia, Tunísia e África do Sul, entre outros, as falhas das plataformas em eliminar conteúdo prejudicial resultaram em violência no mundo real – incluindo tentativas de minar a democracia – e até mortes. Empresas como Meta, TikTok, Google e X (anteriormente Twitter) conhecem há anos os graves impactos de suas falhas em agir e não podem alegar ignorância – elas têm a responsabilidade de manter as pessoas e as eleições seguras”, colocou o relatório da Global Coalition, ressaltando o temor da violência eleitoral.

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