Quase dois anos após os ataques que colocaram a democracia brasileira à prova, o 8 de janeiro de 2023 segue em disputa não apenas nos tribunais, mas também na construção da memória coletiva. Narrativas que buscam minimizar ou distorcer aquele dia continuam circulando nas redes sociais, potencializadas por figuras proeminentes da política nacional e pelo uso crescente de ferramentas de inteligência artificial generativa.
Nesse cenário, preservar a memória do que realmente aconteceu se tornou uma urgência. Em um esforço técnico e também político, pesquisadores da PUC-Rio mapearam mais de 500 mil fotos, 100 mil vídeos e milhares de publicações realizadas entre outubro de 2022 e fevereiro de 2023, uma retrospectiva visual da ação da extrema direita que culminou no ataque às sedes dos Três Poderes.
Todo esse conteúdo está reunido no Acervo Digital do 8 de Janeiro, projeto de caráter acadêmico e científico que nasce para garantir que registros hoje inacessíveis ou removidos permaneçam disponíveis “para a reconstituição dos fatos que colocam em risco a democracia no Brasil contemporâneo”, conforme descrito no site da iniciativa.
O projeto é desenvolvido pelo Condado Lab – Grupo de Pesquisa em Comunicação, Dados e Tecnologia da PUC-Rio, em articulação com o INCT-DSI, o Instituto Democracia em Xeque e o Laboratório de Humanidades Digitais da PUC-Rio.
O que está no acervo?
O Acervo foi projetado para permitir que pesquisadores naveguem por uma representação quase orgânica do período que antecedeu e sucedeu os ataques às sedes dos Três Poderes. “É uma técnica de métodos digitais que registra periodicamente os dados à medida que os acontecimentos se desenvolvem”, explica Marcelo Alves, coordenador do projeto e professor da PUC-Rio.
Essa metodologia, chamada de arquivamento dinâmico, permite preservar os conteúdos enquanto eles ainda circulam, antes que sejam deletados, ocultados por plataformas ou modificados pelos próprios autores.
O resultado desse esforço está no volume e na diversidade do material reunido. São registros que vão de conteúdos amplamente disseminados em redes sociais populares como Facebook, Instagram, X (Twitter), YouTube, TikTok e Kwai até publicações capturadas em plataformas menores e “sombrias”, como BitChute, Gettr, Rumble, Odysse e Altcensored.
Mas a preciosidade do acervo está também no que jamais poderia ser recuperado se não estivesse preservado ali. “O mais valioso é, sobretudo, a cobertura dos próprios acampamentos”, afirma Alves.
Ele relata que havia podcasts e estúdios de gravação dentro das barracas em Brasília, com produção diária de conteúdos audiovisuais que, ao longo do tempo, desapareceram das redes. O acervo reúne dezenas desses conteúdos, hoje raríssimos de se encontrar de forma íntegra.
Preservação da memória
Além de servir como fonte documental, o acervo evidencia uma dinâmica central daquele período. “Obviamente, toda a campanha foi uma campanha de desinformação”, afirma Marcelo Alves. “Eles estavam questionando o resultado das urnas, então grande parte do conteúdo é claramente desinformativo.” A preservação, nesse caso, torna-se ferramenta para compreender, expor e impedir que uma história construída com base na mentira se imponha sobre os fatos.
O pesquisador contextualiza esse fenômeno dentro de um processo mais amplo que vem marcando a política brasileira. Para ele, a desinformação se tornou também uma disputa sobre a memória e observa que há “diferentes negacionismos informacionais” em curso – da democracia ao clima, passando pela saúde e pelo meio ambiente – que colocam em xeque consensos históricos e científicos.
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Esse movimento, explica, compõe o que historiadores definem como uma “guerra pela memória”: a tentativa de manipular ou subverter a memória coletiva para negar eventos e marcos fundamentais da história. No Brasil, ele indica que um um dos exemplos mais evidentes é a negação da ditadura militar de 1964. “Isso se dá de forma bastante direta”, aponta, citando rituais e discursos que buscam ressignificar o período como “revolução” ou como um regime “cívico-militar”.
Esse duelo entre versões e significados se intensificou no 8 de janeiro. Ainda durante as invasões em Brasília, narrativas falsas já buscavam amenizar a responsabilidade dos envolvidos: houve quem atribuísse os ataques à ação de “infiltrados” ou quem tentasse caracterizar a ofensiva antidemocrática como uma simples “manifestação que saiu do controle”.
Para Alves, a tentativa de reescrever o sentido daquele dia, diluindo ou negando seu caráter golpista, se tornou parte da estratégia da extrema-direita e é o que articula o pedido atual de anistia aos envolvidos no 8 de janeiro.
A diretora de Pesquisa do Instituto Democracia em Xeque e pesquisadora da PUC-Rio, Letícia Capone, observa que essa disputa é permanente e atravessa os valores democráticos mais básicos. “Vivemos em um momento em que sentidos e significados são constantemente disputados. A extrema-direita tenta insistentemente ressignificar os conceitos de ‘liberdade de expressão’ para justificar atos antidemocráticos e legitimar discursos de ódio”, analisa.
O acervo liderado por Alves se configura, explica Capone, como uma resposta essencial a esse processo, justamente porque documenta não apenas o 8 de janeiro em si, mas tudo que o antecedeu: “Ele agrega dados dos anos, meses e dias que construíram o 08 de janeiro, tornando-se uma ferramenta importante de evidências sobre a atuação de um campo político específico durante os últimos anos”.
Uma disputa em curso
Letícia Capone alerta que os conteúdos que circularam antes e durante o 8 de janeiro enfrentam hoje um risco concreto de desaparecimento. Segundo ela, mudanças constantes nas APIs e nas regras de acesso das plataformas digitais já provocaram um verdadeiro “apagão de dados” para a pesquisa.
Quando as empresas “operam sem transparência e apagam informações permanentemente”, afirma, elas dificultam tanto a produção científica quanto a responsabilização sobre crimes cometidos online.
A pesquisadora destaca que plataformas são empresas privadas, guiadas por interesses próprios e sem uma regulação digital adequada na maioria dos países. Nesse cenário, ela diz, projetos como o Acervo Digital do 8 de Janeiro cumprem uma função crítica ao registrar evidências concretas da radicalização. “Essas iniciativas ajudam a entender o processo, não apenas o evento isolado”, resume.
Capone também enfatiza que a disputa narrativa não terminou com o fim da invasão em Brasília. O Instituto Democracia em Xeque observa, nos relatórios e monitoramentos mais recentes, o avanço do uso de inteligência artificial por grupos da extrema-direita. Ela cita, por exemplo, conteúdos automatizados em convocações de atos e em ataques políticos que buscam “provocar pânico moral” e manter as bases mobilizadas por meio de uma “realidade paralela”.
Para a pesquisadora, esse movimento reforça um padrão que já marcou os últimos anos. “Nega-se a ditadura, nega-se a ciência, nega-se o resultado eleitoral e agora se nega a violência do 8 de janeiro”, aponta.
A IA, acrescenta, é apenas uma nova ferramenta para dar aparência de legitimidade a essas narrativas, amplificando seu alcance e a velocidade de disseminação. Por isso, ela avalia que os riscos estão longe de cessar: “Essa escalada representa uma ameaça importante ao processo eleitoral de 2026.”
Como navegar
Para acessar o acervo completo, é necessário solicitar autorização por meio do Formulário de Solicitação de Acesso e assinatura do Termo de Responsabilidade. O banco de dados é destinado prioritariamente a pesquisas acadêmicas, como mestrados, doutorados e iniciações científicas, em áreas das humanidades (como história e geografia) e das ciências sociais aplicadas (como sociologia, ciência política e comunicação).
Uma vez concedido o acesso, a navegação acontece por uma interface gráfica que permite combinar diversos filtros. É possível definir intervalos de datas, plataformas específicas, número de postagens e realizar buscas por termos. Na demonstração utilizada pela reportagem, uma busca pela sigla “qgex”, referência aos Quartéis-Generais do Exército que serviram como base para acampamentos golpistas, retorna uma lista detalhada de conteúdos, incluindo:
• data da publicação
• plataforma de origem
• texto de referência ou título
• quantidade de interações e visualizações
• método de extração
• indicação de mídia presente (imagem, vídeo ou ambos)

Segundo Alves, a metodologia utilizada para a coleta do material garante a qualidade da amostra. “Há uma série de critérios que utilizamos na pesquisa, sobretudo a verificação que se faz pela própria interface programática no momento da coleta dos dados”, reforça. Ou seja: quanto mais detalhada a busca, maior a precisão da pesquisa e maior a capacidade de reconstituir as narrativas do período.
Além da consulta detalhada ao banco de dados, há conteúdos disponíveis ao público sem necessidade de cadastro. Entre eles, uma linha do tempo interativa que reúne registros visuais de marcos e temas associados à escalada da radicalização, e a Coleção #VemProQuartel, que reúne panfletos digitais de convocação aos atos antidemocráticos que culminaram nos ataques de 8 de janeiro.
O acesso pela imprensa e por realizadores audiovisuais também está previsto, mas de forma mediada: a equipe do projeto realiza internamente a busca solicitada e envia um relatório com os materiais relevantes aos profissionais interessados.
