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mar 4, 2024 | pontos de vista

Aborto: a pauta como ferramenta política para desinformar

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A cada vez que o aborto entra em cena no noticiário brasileiro, uma fresta se abre para que a extrema direita capture a pauta e espalhe desinformação. Entrei em contato com evidências sobre esse fenômeno desde que comecei a acompanhar mais de perto o tema, como parte da pesquisa para o documentário “Verde-Esperanza: Aborto legal na América Latina”, que narra as experiências bem-sucedidas da Argentina e Colômbia na descriminalização o aborto, em 2020 e 2022, respectivamente. Na última semana de fevereiro, as fake news sobre aborto mais uma vez se disseminaram rapidamente após a publicação de uma nota técnica do Ministério da Saúde que derrubava o limite temporal, sugerido pelo governo Bolsonaro, para a realização da interrupção nos três casos já permitidos por lei: estupro, risco de morte para a gestante e anencefalia do feto. A nota técnica não ampliava as situações em que o procedimento deve ser garantido, mas as fake news que entraram em circulação alardeavam que o presidente Lula teria “liberado o aborto no Brasil em qualquer tempo gestacional”, informação verificada como falsa pela Agência Lupa

Em menos de 24 horas, sob forte pressão de grupos da extrema direita e de fundamentalistas religiosos, a ministra Nísia Trindade revogou a nota, alegando que “o documento não passou por todas as esferas necessárias do Ministério da Saúde e nem pela consultoria jurídica da Pasta”. A NT nº2/2024 também anulava a cartilha “Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento” que, entre outras informações falsas, afirmava que “todo aborto é crime” e defendia a investigação policial de vítimas de violência sexual. A manutenção do limite temporal para o aborto legal vai contra as recomendações da Organização Mundial de Saúde e contradiz o Código Penal, que não define idade gestacional para o procedimento dentro dos três permissivos legais. 

A recomendação de prazo para realizar a interrupção tem causado insegurança jurídica aos profissionais de saúde que estão na ponta, resultando em graves violações dos direitos de meninas, mulheres e pessoas capazes de gestar. Para citar apenas um caso, no final de 2023, a indígena Mirian Bandeira dos Santos, de 35 anos, morreu no parto depois de ter tido negada a interrupção legal pelo Hospital das Clínicas do Paraná. Mãe de dois filhos e moradora da reserva indígena de Mangueirinha, ela foi vítima de violência sexual cometida pelo ex-parceiro e estava com 20 semanas quando tentou interromper a gestação. A escassez de hospitais que realizem o aborto legal, principalmente no interior do país, faz com que as pessoas demorem a acessar o serviço – e quanto mais semanas levam nessa busca, menor é a chance de serem atendidas. Um levantamento do Projeto Vivas e Portal Catarinas em 2023 mostra que só quatro hospitais brasileiros realizam hoje a interrupção acima das 20 semanas.

Uma pauta arregimentada pela extrema-direta e por grupos religiosos

Um dos conteúdos falsos mais compartilhados sobre a nota técnica do Ministério da Saúde foi um vídeo, já bastante disseminado nas redes em outras ocasiões, com informações pseudo-científicas sobre a interrupção após 22 semanas. O material foi incluído no texto divulgado na quarta-feira (28) pela Gazeta do Povo, jornal dirigido por Guilherme Döring Cunha Pereira, membro do Opus Dei. Além do veículo paranaense, o site Brasil Sem Medo, fundado por Olavo de Carvalho, foi um dos primeiros a espalhar informações falsas sobre a nota técnica. Distorcer dados científicos é uma das principais estratégias entre os atores da extrema-direita que atuam contra o aborto legal, segundo Laura Molinari, fundadora da campanha nacional pela descriminalização Nem Presa, Nem Morta e uma das entrevistadas do documentário “Verde-Esperanza”. “Um argumento recorrentemente trazido à tona é o de que existiria uma ‘síndrome pós-aborto’ que causaria depressão e dificultaria outras gestações, mesmo que não haja comprovação científica para isso”, afirma. Molinari lembra que este também foi um dos argumentos citados na engavetada PEC 29/2015, do deputado federal Aécio Neves, que pretendia acrescentar à Constituição Federal “a inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção”. 

No ano passado, em uma apresentação online para ativistas pela descriminalização, acompanhei uma análise de redes sociais do MIDIARS (Laboratório de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais), da Universidade Federal de Pelotas, que demonstra como o campo discursivo em torno do aborto é atualmente dominado nas redes por atores anti-direitos reprodutivos, arregimentando extrema-direita e religiosos. O estudo, liderado pela pesquisadora Raquel Recuero, mostra que tanto no Facebook, quanto no Instagram, é maior o volume de posts e hashtags contrários ao aborto, com constrrução de narrativas que buscam causar identificação e incitar o medo. Em geral, os posts associam o aborto a palavras sensíveis, como “crianças”, “bebês”, “mães” e “Deus”, além de enaltecer valores religiosos. Outro procedimento desses grupos é relacionar o aborto à legalização das drogas e a outras pautas de costumes. 

Das fake news à abordagem offline

As fake news que circulam nas redes e aplicativos de mensagem são só a ponta mais visível de um investimento sistemático das forças anti-aborto no Brasil. Em seu depoimento para o documentário, a pesquisadora Sonia Corrêa, do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês), contextualiza o surgimento da chamada “revolução conservadora” que se inicia nos anos 70, nos Estados Unidos: “Ela envolve atores evangélicos e seculares para a criação de uma infra-estrutura de produção de conhecimento legal conservador, com mobilização política e muito investimento em recursos, que financiam campanhas públicas e organizações não-governamentais”.

A pesquidora acredita que, depois da revogação da decisão Roe x Wade em 2022, que limitou o direito ao aborto em diversos estados norte-americanos, parte dos recursos antes investidos lá em campanhas conservadoras passariam a ser destinados, em parte, à América Latina. A região registrou os avanços mais significativos em relação ao direito ao aborto nos últimos 10 anos.

Uma das frentes de atuação dos grupos anti-aborto no Brasil é a abordagem direta junto a pessoas que têm a intenção de interromper a gestação indesejada. Um estudo publicado em 2020 pela Privacy International mostra que organizações que trabalham contra os direitos reprodutivos utilizam sites e redes sociais de apresentação neutra para disseminar informações enganosas com o objetivo de dissuadir mulheres de abortar. Esse tipo de estratégia de desinformação é retratada em outro filme recente sobre o tema, o longa de ficção “Levante” (Lillah Hallah, 2023). A protagonista procura atendimento em uma clínica que supostamente realiza abortos clandestinos, mas descobre que se trata de uma organização religiosa, que depois passa a persegui-la. 

Os danos provocados pela desinformação e pressão fundamentalista em torno do aborto legal se mostram palpáveis e podem culminar em retrocessos, como a revogação da Nota Técnica Nº2/2024 do Ministério da Saúde. Para além do posicionamento de repúdio à suspensão da nota, feito imediatamente por organizações nacionais e internacionais de defesa dos direitos reprodutivos, a sociedade civil deve assumir a responsabilidade de estar melhor informada sobre o tema. Sem a formação de uma massa crítica pró-direitos reprodutivos que se posicione em situações como a da última semana, deixamos escapar as raras possibilidades de avanço no país conservador que o Brasil se tornou. 

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Maria Lutterbach

Roteirista e diretora do documentário "Verde-Esperanza: Aborto legal na América Latina", fundadora da Filmes da Fonte, produtora audiovisual com foco em temas de gênero e direitos. Autora do romance "Baixo Araguaia"(Quelônio, 2021).

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