Assim que começamos a sentir um desconforto ou sintoma, recorremos aos buscadores – Google e Bing, sobretudo – para tirar dúvidas sobre saúde, pesquisar sobre sintomas e até mesmo procurar opções de cura e tratamento. Isso sem falar nas mensagens que enviamos para amigos e conhecidos via WhatsApp e Telegram para saber se eles já passaram por isso e tem alguma dica de como sanar o problema sem que precisemos ir ao médico. A relação entre buscas e consumo de informação sobre saúde nas mídias digitais já vinha mudando, mas com a pandemia da Covid-19, o isolamento social e maior tempo de permanência conectado, o brasileiro vem buscando mais sobre saúde nesses canais.
Em 2021, de acordo com dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), 70% dos usuários recorreram à Internet para buscar informações ou serviços públicos. Nos temas pesquisados, questões ligadas à saúde pública, o que inclui agendamento de consultas, solicitação de remédios e busca por informações sobre sintomas e opções de tratamento lideraram o ranking.
A maior oferta de conteúdos, digitalização dos serviços oferecidos por estabelecimentos de saúde, como Teleconsulta e presença de especialistas na imprensa representaria um ponto positivo para facilitar a vida do cidadão brasileiro se, ao realizar buscas digitais, ele também não se deparasse com dois grandes inimigos e ameaças à saúde pública: grupos e perfis de mídias sociais que divulgam conteúdos falsos, sites que disseminam desinformação médica e científica, chamados de fake science e perfis dedicados à venda de protocolos milagrosos para cura de doenças como Alzheimer, câncer, dentre outros. No Quênia, uma investigação conduzida pelas organizações #ShePersisted e Fumbua constatou uma rede de desinformação médica lucrativa para as principais plataformas, que permitem anúncios de produtos ineficazes destinados às mulheres.
Devido ao crescimento da desinformação médica e alto alcance de vídeos que oferecem promessas de cura adquirem, ao serem promovidos pelos algoritmos e sistemas de recomendação para outros usuários, recentemente, o Youtube anunciou um conjunto de iniciativas para tentar mitigar os efeitos nocivos das cadeias de contágio em torno de tais conteúdo, a exemplo de curas para o câncer. A partir disso, os conteúdos serão enquadrados, seguindo as diretrizes novas, nas categorias de Prevenção, Tratamento e Negação.
Como aponta Santini (2023), as terapias pseudocientíficas vem sendo utilizadas para promoção de conteúdos falsos e defesa de tratamentos milagrosos, mas que não possuem qualquer registro nos órgãos reguladores, pesquisa clínica nem eficácia comprovada.
Circulando não apenas nas redes sociais, mas em aplicativos de mensageria (troca rápida de mensagens), os conteúdos de falsa ciência fizeram e tem feito das mídias digitais seu palco para orquestrar e promover campanhas de desinformação.
Divulgados em cascatas, os conteúdos enganosos e que vendem soluções e curas milagrosas são apenas a parte visível de um processo que vai além e que Wardle e Derakhshan (2017) denominaram “desordem informativa”, da qual a desinformação é uma das principais características.
Se as pesquisas sobre saúde ocorrem nos buscadores, não se pode esquecer de outros canais por onde a desinformação sobre saúde, literalmente, ‘corre solta’ e do quanto as redes sociais estão recheadas de perfis de influenciadores recomendando produtos não validados, pretensos especialistas comercializando ebooks com protocolos de cura, cursos e aulas com promessas de uma vida mais saudável. É a chamada indústria das curas milagrosas em prol da vida perfeita e livre de doenças.
Problema da desinformação é multiplataforma
Com a mudança dos Termos de Uso de plataformas como Youtube e Meta, muitos produtores de conteúdo pseudocientífico migraram para outros canais em que as restrições para disseminação de seus vídeos são mais brandas. Mas, pesquisas já apontam que após essa saída da plataforma, ou deplataformização, seja por banimento temporário (shadowban), por tempo indeterminado, a restrição de publicação de conteúdo ou fim da monetização, podem não ser tão efetivas, quando os perfis passam a se fortalecer em outras mídias, ou se replataformizam.
É assim que a desinformação em saúde, fake science, vendas de curas milagrosas e práticas de charlatanismo se fortalecem, saindo apenas dos sites e das redes sociais mais conhecidas, ou do mainstream, para o chamado ecossistema de mídia alternativo, ocupando plataformas como Telegram, Kwai, TikTok e até mesmo o novato Threads.
É preciso ter uma visão integrada para avaliar o quão o banimento isolado, por exemplo, de um perfil que possui discurso antivacina do Youtube, é efetivo, se esse conteúdo é multiplataforma e já foi replicado em canais de mensageria, como Telegram e propagado nas chamadas ‘contas minion’ , ou seja, perfis que replicam vídeos em perfis não oficiais e comunidades de fãs, como se pode ver em páginas sobre curas naturais no Tiktok.
O chamado cenário de desinformação multiplataforma se torna ainda mais multifacetado e complexo quando, em paralelo aos impactos da curadoria algorítmica na entrega de conteúdo, esses perfis pseudocientíficos se aproveitam das brechas na moderação e falta de regulação para promover anúncios de produtos falsos na galeria de Ads do Meta, redirecionar o usuário para páginas de captura de dados (Landing Pages), solicitar informações sensíveis, como Pix e assim, aplicar golpes.
Llorente, Biteniec e Bertolin (2017) destacam que os blogs e sites emergem, no contexto de mudança nas redes sociais, como novos espaços de pesquisa e também de disseminação de práticas de charlatanismo, ao possibilitarem ‘entrega orientada’ de conteúdos alternativos, sendo um dos traços da ‘desinformação contemporânea’. Espaço que possibilita promoção de anúncios, inclusão de vídeos, áudios, textos e imagens e monetização com um crivo menos rígido que em outras plataforma, a blogoesfera precisa ser mais estudada, sobretudo do ponto de vista da economia política da desinformação.
Utilizando como exemplo o caso de curas naturais para o Alzheimer e inserindo no Google as palavras-chave ‘cura natural’ + ‘alzheimer’, foi possível localizar dois anúncios no próprio buscador e no Youtube, sendo promovidos pelos site Saldavida e BoticaAlternativa, como as imagens a seguir mostram:
Print do anúncio com cura rápida para Alzheimer, o Protocolo Reparo da Memória
Exemplo de banner com figura de um profissional de saúde para conferir autoridade ao ‘Protocolo reparo da memória’, que reverte o Alzheimer e seus sintomas. A imagem do profissional é proveniente de um banco de imagens.
Telas de busca com resultados dos anúncios promovidos também no Youtube, mostrando como a estrutura de mídia programática e publicidade digital fortalecem a indústria da desinformação.
Ao clicar nesses anúncios, o usuário é redirecionado para landing pages ou páginas de vendas que trazem a pretensa figura de um médico, com nome genérico de Joel Ribeiro, com um currículo que ao ser checado não existe, foto padrão de banco de imagem e vídeos também de personagens falsos.
Ao se interessar pelo produto para cura do Alzheimer em poucos dias e ir no ‘saiba mais’, o usuário é direcionado para uma página de vendas na plataforma Monetize, onde se é convidado a inserir dados sensíveis, como número do cartão de crédito, CPF, e etc.
Landing page onde o protocolo de cura do Alzheimer é vendido sem qualquer moderação.
A estrutura dos anúncios utilizados nesse estudo de caso chama atenção pelo uso de riqueza de técnicas de marketing digital, como inserção de meta Tags, call to action, linguagem direta e verbos no imperativo, o que tornam o texto atrativo.
Os sites e páginas falsas emergem como pontos centrais nas campanhas de disseminação do conteúdo pseudocientífico e, em geral, eles são Privacy Protected quando se pesquisa mais detalhes sobre titularidade na ferramenta Who Is, ou seja, não se consegue obter muitos detalhes sobre ele.
Informações sobre titularidade do site no WhoIs. Os dados, porém, são protegidos.
Além disso, eles funcionam como landing pages em que há vídeos, fotos e textos que direcionam para outras mídias ou para páginas de vendas, por exemplo na Monetize, Hotmart ou Edduz, o que também dá indícios de uma falta de moderação sobre a acurácia e veracidade dos produtos e serviços que ali são ofertados.
Esse exemplo e estudo de caso empíricos mostram como as campanhas de desinformação atuais do ecossistema do charlatanismo e das curas naturais podem estar sendo potencializadas pelos próprios recursos e ferramentas das plataformas e seu modelo de negócios baseado em anúncios e cliques.
Ou seja, a desinformação acerca da venda de produtos de curas milagrosas é multiplataforma, complexa e articula não apenas sites, mas landing pages, páginas de plataformas de vendas, a estrutura de anúncios do Google e Youtube, além de todo o potencial de ampla distribuição para outros canais de mídias sociais que fornecem estruturas propícias, como grupos de Facebook, Telegram, etc.
Além do modelo de negócio conhecido como ‘economia do clique’ ou seja, a estrutura de anúncios (Ads), outras características das próprias mídias digitais, mesmo com novas regras de moderação, seguem permitindo a criação de anúncios falsos, conteúdo que se apropria de influenciadores e figuras públicas como médicos que não existem para atrair cliques e possibilitar aplicação de golpes, sendo notória a existência de ações online orquestradas e espalhadas em diversas mídias sociais.
É essencial avaliar que existe a possibilidade destes sites utilizarem bots sociais para manipular a opinião pública, em campanhas coordenadas que podem aumentar acessos ao canal, burlar mecanismos de popularidade – o chamado fake traffic e fazer com que suas páginas de venda de produtos falsos apareçam nas primeiras posições dos buscadores.
Em um estudo comparativo, a organização europeia EU DesinfoLab investigou como Facebook, Instagram, YouTube, TikTok e Twitter responderam aos desafios da desinformação em saúde em suas plataformas e foram localizados diversos gaps nas táticas de enfrentamento.
Se consideramos a disseminação do conteúdo fake science e as práticas de charlatanismo para além dos buscadores, sites e seu crescimento em mídias ainda pouco estudadas, como Kwai, TikTok e Threads, é preciso repensar as estratégias de combate à desinformação nesse novo contexto multiplataforma, visto que banir um conteúdo em um canal pode não ser tão efetivo quando ele já se espalhou em outras mídias.
Portanto, articular esforços, buscar um diálogo mais próximo com as plataformas, sociedade civil e órgãos de governança, em prol da redução da opacidade de suas bibliotecas de anúncio, funcionamento dos algoritmos e da estrutura da publicidade digital é essencial para reduzir a vulnerabilidade e exposição a golpes de quem está em busca de cura e tratamento para diversas doenças.
Muito mais que dados sensíveis dos usuários, os golpes envolvendo produtos, serviços e opções de tratamentos não validados podem trazer sérios danos para a vida de milhares de pessoas que depositam no clique sua esperança de cura.