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@thiagoilustrado

maio 27, 2022 | Destaques, Notícias

A desinformação propagada pelo Estado na chacina do Jacarezinho

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E quando o agente por trás da propagação de desinformação é o próprio Estado e seus representantes? Há pouco mais de um ano, o caso que ficou conhecido como “Chacina do Jacarezinho”, ocorrido no Rio de Janeiro no dia 6 de maio de 2021, teve elementos que o caracterizam como um caso de produção de desinformação propagada pelo Estado, com o objetivo específico de manter uma política de segurança pública arbitrária e racista. 

A “Chacina do Jacarezinho” foi o maior massacre promovido por uma operação policial em um território de favela no país, com o assassinato de 28 pessoas. Longe de ser um caso isolado, o extermínio propagado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro se deu em um contexto de sistemáticos assassinatos cometidos pelo Estado contra a população preta, pobre e periférica em todo o Brasil. Segundo a organização Human Rights Watch, somente no primeiro semestre de 2021, foram assassinadas 453 pessoas pelas polícias no estado do Rio de Janeiro. Esta semana, em operação dita emergencial contra o tráfico de drogas na Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, a polícia contabilizou a morte de 23 pessoas, entre elas Gabrielle Ferreira da Cunha, de 41 anos, vítima de bala perdida dentro de casa. 

Estes episódios se tornam ainda mais graves uma vez  que acontecem durante a vigência de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que restringe operações policiais durante a pandemia da Covid-19. A decisão do STF se deu por meio de uma grande mobilização de vários setores da sociedade, consolidada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 635, a chamada “ADPF das Favelas”.

1 ano da chacina de Jacarezinho

Crédito: Selma Souza/Voz das Comunidades

Informações falsas e distorção dos fatos no caso Jacarezinho

Vários policiais, inclusive o porta-voz da Polícia Civil, alegaram, num primeiro momento, que as 28 mortes se deram por conta de um confronto armado contra moradores. Depois, a necropsia apontou que não houve confronto; e sim execuções, corroborando depoimentos dos moradores da favela, que testemunharam a operação e, desde os primeiros depoimentos, indicavam o caráter de massacre. Isso fez com que policiais mudassem os próprios depoimentos, gerando um debate sobre a própria classificação do episódio como uma chacina, já que a falsa versão do confronto seria apenas uma tentativa de legitimar os assassinatos cometidos pelos agentes públicos.

 Em comunicado oficial publicado na internet na tarde do dia 6, logo após o massacre, a Polícia Civil do Rio de Janeiro divulgou que a operação fazia parte de uma investigação sobre o aliciamento de crianças, por traficantes, para que passassem a integrar as facções criminosas que atuam naquele território. O comunicado ainda afirmava que dentre as práticas executadas pelos suspeitos estavam tráfico de drogas, roubo de cargas, assaltos a pedestres, homicídios e sequestros de trens. No entanto, na denúncia feita pela própria Polícia Civil, que originou e permitiu a operação, aparece apenas o crime de tráfico, sem qualquer menção aos outros delitos relatados após o massacre. 

A versão da politica conta uma história que não se confirma com o presente nos autos processuais. Mais do que isso, revela uma inaceitável inconsistência quanto aos crimes praticados pelos suspeitos que, posteriormente, foram violentamente assassinados.

Mesmo do ponto de vista policial, o resultado também foi trágico. Antes da operação, a Polícia Civil obteve junto à Justiça 21 mandados de prisão para deter os supostos criminosos. No entanto, entre os 28 mortos, apenas 3 possuíam contra si mandados de prisão. Das 21 ordens de prisão, apenas 3 foram cumpridas. Ou seja, a operação não cumpriu o papel para o qual foi oficialmente designada e serviu apenas para promover mais uma massiva e incontestável violação de direitos humanos, resultando no massacre de 28 homens, para os quais o direito à defesa foi sumariamente negado. 

Crédito: Selma Souza/Voz das Comunidades

 

A coletiva de imprensa: descontextualizando os fatos

A coletiva de imprensa realizada pela Polícia Civil no mesmo dia 6 de maio, logo após o episódio, também demonstrou as inúmeras e inegáveis fragilidades da operação. Diante de dezenas de jornalistas e com transmissão ao vivo em diversos veículos de comunicação, a corporação e seus representantes lançaram mão de justificativas difusas e argumentações vagas para defender o sucesso da operação que, supostamente, promoveria a preservação do direito de ir e vir dos moradores do Jacarezinho, a libertação de meninas e mulheres subjugadas pelo tráfico e a defesa da “sociedade de bem”.

Segundo o delegado Rodrigo Oliveira, que comandou a coletiva, as muitas mortes se deveram ao fato de ter havido muito confronto e de os bandidos estarem fortemente armados. O que se viu, no entanto, não pode ser descrito exatamente como um confronto: além da necropsia ter identificado características de execução, apenas um policial foi morto entre as 28 vítimas.

Em mais de uma oportunidade, o delegado fez questão de reivindicar que, apesar do alto número de mortos, os policiais haviam seguido rigorosamente todos os protocolos da Polícia antes, durante e depois da operação. Segundo ele, houve especial preocupação em garantir a preservação dos locais onde as mortes ocorreram para possibilitar a realização de perícias e investigações.

A realidade, no entanto, é que os policiais jamais informaram o contexto em que se deu cada morte e não descreveram as supostas situações de confronto extremo que teriam demandado o emprego excepcional de violência letal com vistas à garantia da legítima defesa. Mais do que isso, o relato de moradores revela que diversos moradores do Jacarezinho foram obrigados a carregar corpos para carros da polícia, nenhum deles vivo, o que aponta para a adulteração das cenas de crime.

 

A narrativa do bandido bom é bandido morto 

A própria fundamentação da operação revela a desinformação impregnada no massacre do Jacarezinho. Como já vimos, a polícia alegou, desde o início, agir para conter o aliciamento de crianças pelo tráfico, além de outros crimes menores. Jornalistas fizeram dezenas de perguntas sobre este ponto, especificamente: como a polícia chegou a tal informação, quantas eram as crianças, de que idade, quanto tempo durava essa investigação. Todas as respostas da corporação e de seus representantes foram esguias, inconsistentes e, algumas, como esta do delegado Oliveira, inaceitáveis: “São várias crianças, isso aí acontece. Isso é uma prática do tráfico de drogas, arregimentar crianças, no caso foram menores ali daquela comunidade, da comunidade do Jacarezinho, mas isso acontece nas comunidades que sofrem influência do tráfico de drogas no estado do Rio de Janeiro”.

Diante da brutal incapacidade de fornecer dados, informações e respostas mais técnicas e precisas, os policiais adotaram dois recursos retóricos para enfrentar os questionamentos dos jornalistas: o argumento do sigilo, afirmando que, por tratar-se de uma investigação policial, não era possível dar mais detalhes; e a narrativa punitivista do “bandido bom é bandido morto”, que funcionou como uma capa para aquelas ações violentas e arbitrárias da polícia e, mais ainda, para as políticas de segurança pública que geram única e exclusivamente o extermínio da população negra e pobre.

 

O duplo impacto para as famílias 

O que se viu após o massacre, portanto, foi um intenso e determinado esforço por parte da Polícia Civil de vender a narrativa de criminalização das vítimas do Jacarezinho. Ao dizer que os cidadãos assassinados eram criminosos, sem fornecer qualquer evidência e sem possibilitar o direito de defesa, o Estado brasileiro, por meio dos agentes policiais, mais uma vez lançou mão da sua narrativa unilateral, revitimizando, assim, as pessoas assassinadas e, mais do que isso, infligindo dor e revolta na vida dos amigos e familiares desses cidadãos.

A própria disseminação dessa falsa narrativa policial, aliada aos rumos um tanto quanto questionáveis da investigação fizeram com que esses amigos e familiares se sentissem coagidos a denunciar as irregularidades na ação do Estado.

Ou seja, a desinformação atravessou o direito ao luto e ao silêncio de pessoas que deveriam estar sendo amparadas por instrumentos de acolhimento, como programas de proteção a testemunhas, mas que se viram na necessidade urgente de prestarem depoimentos, colaborarem com as investigações e denunciarem as violações cometidas a veículos de comunicação. Isso porque estava claro, entre outras coisas, que os policiais não foram totalmente verdadeiros nas suas manifestações públicas, especialmente na coletiva de imprensa, e as cenas dos crimes estavam completamente comprometidas.

O absoluto descaso com amigos e familiares dos cidadãos assassinados, inclusive, foi uma constante na chacina do Jacarezinho. Relatos dão conta de que a Polícia Civil, em momento algum, informou para onde as vítimas da ação policial estavam sendo levadas logo após a operação. Em meio a tanta dor, desespero e angústia, as pessoas ainda tiveram que procurar seus parentes nos hospitais e institutos médico-legais (IMLs) da região, evidenciando, mais uma vez, a completa indiferença dos responsáveis pela operação com os moradores da favela.

Crédito: Selma Souza/Voz das Comunidades

Seguidas violações de direitos humanos

Recentemente, no dia 11 de maio de 2022, a Polícia Civil entrou novamente com caveirões no Jacarezinho, desta vez para derrubar um monumento feito por moradores para homenagear as vítimas do massacre ocorrido em 2021. Para justificar tal arbitrariedade, as autoridades policiais alegaram, em nota, que a derrubada do memorial levou em consideração a apologia ao tráfico de drogas, uma vez que 27 dos 28 mortos tinham passagens pela polícia e envolvimento comprovado com atividades criminosas.

A justificativa oficial que pretensamente respaldaria a diligência exemplifica, de forma absolutamente notória, o racismo institucional introjetado nas forças policiais brasileiras. Ao justificar os assassinatos e a derrubada do monumento no Jacarezinho, a Polícia Civil viola o direito constitucional, disposto em tratados internacionais, de presunção de inocência, haja vista que nenhuma das vítimas da chacina foi submetida a processo criminal para eventual condenação pelos crimes imputados, tampouco submetidas a escrutínio investigativo qualificado da Polícia Civil. Viola também os direitos constitucionais e firmados em pactos internacionais de igualdade e não discriminação, afinal o processo de criminalização das vítimas e desrespeito às suas memórias guarda evidente correlação com o fato de serem pessoas negras e moradores de favelas. Viola ainda o direito à memória, imagem, nome e honra das vítimas. E viola, finalmente, o direito ao luto dos amigos e familiares das vítimas, agravando, potencialmente, os danos psíquicos e sociais decorrentes da chacina.

As pessoas assassinadas durante a chacina, incluindo um adolescente, não foram processadas ou julgadas. Foram executadas sumariamente. Ainda que houvesse condenação judicial inequívoca sobre essas pessoas, o Estado teria o dever de garantir suas vidas. Mas, pior do que isso, a grande maioria das vítimas assassinadas sequer era investigada pela Polícia Civil no âmbito da operação que deu ensejo ao assassinato coletivo. Ou seja, o ato flagrantemente ilegal da Polícia Civil ultrapassa a competência atribuída ao exercício de sua função: Polícia Civil não é judiciário e muito menos esfera decisória do executivo.

A prerrogativa do sigilo impede outras versões 

A desastrosa coletiva de imprensa realizada pela Polícia Civil foi, muito possivelmente, o máximo de informações oficiais sobre o massacre do Jacarezinho que os cidadãos brasileiros terão acesso. Isso porque a Secretaria de Polícia Civil impôs sigilo reservado de cinco anos a qualquer informação sobre a operação em questão e a todas as outras operações policiais feitas entre junho de 2020 e maio de 2021. Veículos de imprensa solicitaram o acesso a documentos do caso, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), mas receberam como resposta um ofício informando que a documentação solicitada possui “informações de caráter sigiloso, inerentes a planos e operações estratégicas de Segurança Pública a cargo da Secretaria de Polícia Civil”, e que o conteúdo “pode comprometer e pôr em risco outras atividades de investigação”.

Existe um claro conflito de interesses quando uma polícia civil, que investiga se os próprios agentes violaram a lei, decide decretar sigilo de informações sobre uma operação com o argumento de que a publicação de informações pode comprometer a investigação ou atividades de inteligência. Isso é ainda mais grave, no caso do Jacarezinho, quando a versão oficial contrasta de forma escandalosa com o trabalho de necropsia e com os relatos de moradores do local.

Até hoje, ninguém foi capaz de fornecer uma explicação detalhada das razões concretas que justificam as 28 mortes e, muito menos, a decisão de classificar a informação como reservada por um período tão longo. Assim, fica claro que a decretação do sigilo mais parece uma tentativa de ocultar informações de interesse público e dar vazão à desinformação propagada por agentes do Estado e que, infelizmente, encontram eco em diversos setores da sociedade que ainda insistem em defender políticas de segurança pública arbitrárias, violentas, genocidas e, ainda por cima, absolutamente fracassadas. 

Em artigo publicado no “Le Monde Diplomatique Brasil”, diversos autores resumiram: “o massacre do Jacarezinho foi uma forma de dizer a todas as instituições e organismos nacionais e internacionais que ninguém controla a polícia, que ela é quem define o que é excepcional e legítimo na sua atuação, que ela não se submeterá a nenhum controle externo, que as operações não serão interrompidas, e que a polícia tampouco assume qualquer compromisso em reduzir as altas taxas de letalidade”. Mais do que isso: a polícia deixou claro que a desinformação é uma estratégia de sua atuação e só ela terá o controle das narrativas repassadas à sociedade, sejam elas verdadeiras ou não

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