Pelo menos cinco fatos da última quinzena de outubro evidenciaram como o tema da desinformação está no epicentro do debate político nacional. Ao mesmo tempo, mostraram a dificuldade para se enfrentar o tema na dimensão que ele tem. Os fatos foram os seguintes:
– por seis votos a um, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o mandato do deputado estadual Fernando Francischini, do Paraná. Foi a primeira vez que um parlamentar teve mandato cassado por difusão de notícias falsas. Ele foi cassado por ter feito um live afirmando que as urnas eletrônicas eram fraudadas para impedir a vitória de Bolsonaro.
– o mesmo TSE julgou a ação eleitoral contra a chapa Bolsonaro-Mourão, que avaliou os disparos em massa. Embora a chapa tenha sido inocentada, vários votos salientaram a gravidade do que ocorreu em 2018. O ministro Alexandre de Moraes disse que se o mesmo acontecer em 2022, mandatos serão cassados e os responsáveis serão presos.
– O presidente Bolsonaro relacionou, em live veiculada no dia 21, vacinas contra Covid-19 ao desenvolvimento de AIDS. Poucos dias depois, a live foi retirada do ar por Facebook e YouTube, e o canal do presidente na plataforma de vídeos foi suspenso por uma semana.
– O relatório da CPI produziu um capítulo de 200 páginas sobre desinformação na pandemia, identificando cinco núcleos articulados para disseminação de notícias falsas: núcleo de comando, núcleo formulador, núcleo político, núcleo de formulação e produção, e núcleo de financiamento. A CPI identificou sete temas de fake news, desde a origem do vírus até sobre a eficácia das vacinas.
– O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) protocolou a primeira versão do relatório do grupo de trabalho destinado a analisar e elaborar parecer ao projeto de lei nº 2630, o PL das Fake News, que foi aprovado no Senado Federal em 2020.
Embora os cinco fatos tenham repercutido individualmente, é preciso arriscar um olhar de conjunto sobre eles, e entender o tamanho do desafio para diminuir a ocorrência e o impacto das notícias falsas sobre a realidade nacional. Esse olhar de conjunto permite chegar a cinco conclusões:
– A desinformação é um fenômeno significativo no Brasil e gera consequências graves tanto em processos eleitorais quanto em processos sociais. O relatório da CPI e a análise dos casos no TSE reforçaram a leitura de que a desinformação é um problema grave. O país é 2º em óbitos causados pelo novo coronavírus, o 3º com mais casos confirmados e o 4º em doses de vacinas aplicadas. A CPI conclui que ‘o acesso à informação confiável sobre efetivos riscos à saúde apresentados pela Covid-19 é tão importante quanto qualquer outra medida de proteção recomendada pelos órgãos de saúde’. Da mesma forma, a leitura do TSE, no julgamento dos dois processos, é que a desinformação tem impacto forte e negativo sobre o processo eleitoral e a democracia.
– Há hoje núcleos organizados para produção de desinformação com finalidade política, com participação do presidente da República, que atua abertamente na promoção de notícias falsas. Ao descrever os cinco núcleos que atuam sobre desinformação, a CPI descreve uma organização análoga a uma organização criminosa, que trabalha de forma articulada e de forma sincronizada. Ainda que se saiba que a desinformação é um fenômeno distribuído, o fato de haver uma organização que reúne políticos poderosos, grupos de financiamento com muitos recursos e o uso de recursos públicos, faz com que o impacto seja enorme. De toda forma, pela ausência de legislação específica, o máximo que a CPI pôde fazer foi enquadrar as situações como de ‘incitação ao crime de descumprimento de norma sanitária’.
– O TSE reconhece o tamanho do problema, quer passar recados claros com vistas a 2022, mas o processo de produção de provas ainda é falho e tem limites. Os recados práticos e retóricos do TSE sinalizam disposição da Corte para lidar com o problema no tamanho que ele tem. Mas não se sabe se as palavras duras terão efetividade em 2022, já que o processo de produção de provas que identifiquem claramente autoria e dano efetivo e grave é bem mais tortuoso do que parece à primeira vista. A cassação do deputado paranaense se deu em um caso em que a desinformação foi feita à luz do dia, em live com 70 mil visualizações simultâneas ao vivo, que teve 400 mil compartilhamentos e 6 milhões de visualizações totais. No caso da desinformação em aplicativos de mensageria, o fenômeno é opaco, com mecanismos parcos para identificação de responsabilidade legal e alcance das mensagens.
– As plataformas estão atuando para enfrentar o problema, mas o sistema é precário e a atuação delas é discricionária. Embora as plataformas tenham normas para moderação de conteúdo desinformativo, a aplicação dessas regras depende de muitos fatores, inclusive de avaliações políticas discricionárias por parte delas. Esse fato é deixado claro no caso do Facebook Papers, que repercutiu, também no mês de outubro, a partir do vazamento de informações. O sistema de moderação é precário, muito focado no conteúdo em língua inglesa, e as consequências efetivas dependem do clima político em cada país.
– As respostas legislativas para o problema da desinformação podem ajudar a enfrentar a questão, mas não tem o condão de mudar o cenário estruturalmente. O relatório do deputado Orlando Silva é de forma geral positivo, ajuda a melhorar o processo de moderação de conteúdos e a conter comportamentos coordenados que geram difusão ampla de conteúdo falso ou enganoso. Mas não há como mudar estruturalmente o cenário a partir de regulação, especialmente, no caso brasileiro. É particularmente difícil chegar a soluções para diminuir a desinformação em aplicativos de mensagem (como WhatsApp e Telegram) que sejam aceitas por todos os interessados no combate à desinformação.
Em suma, a leitura de cenário mostra um quadro grave causado pela desinformação, uma tentativa de se avançar nas respostas, mas uma capacidade ainda limitada de conter os efeitos graves da mesma sobre a saúde pública e a democracia.