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acervo pessoal

dez 5, 2022 | pontos de vista

A Copa do sportswashing: uma mão na taça e outra na consciência

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Confesso que fiquei com um pouco de medo de ser cancelada por estar curtindo tanto a Copa e demorei para saber se estava ‘ok’ ativar o modo ‘rumo ao hexa’. Esse receio nem foi sobre o uso ou não da amarelinha, sequestrada nos últimos anos. Aliás, é importante deixar claro que esse texto não é sobre isso e nem sobre a cultura do cancelamento – que merece sim um PV (mesmo sob o risco do cancelamento). É sobre torcer apesar do Catar, apesar da sede da Copa do Mundo, apesar do sportswashing. 

O Grupo de Pesquisa objETHOS, o Observatório da Ética Jornalística, levantou 7 perguntas sobre a cobertura da Copa do Mundo no Catar que foram complementadas pela jornalista Angélica Lúcio. No fim do seu texto, ela questiona:

Como torcer, por qualquer seleção que seja, e ignorar as constantes violações de direitos humanos naquele país, envolvendo trabalhadores imigrantes, mulheres e população LGBT+? Como se deixar cegar pela bola correndo no gramado e não refletir sobre os inúmeros episódios de cerceamento à liberdade de imprensa e de expressão no Catar?”

Longe de mim querer responder isso, até porque essas perguntas martelaram muito na minha cabeça – confesso que mais antes da bola rolar, mas elas ainda seguem pairando por aqui.

Em dezembro de 2010, a Rússia e o Catar foram escolhidas como as sedes das Copas de 2018 e 2022, respectivamente. Na época, a Inglaterra e os Estados Unidos eram os favoritos para receberem as Copas. A escolha de dois países tão problemáticos em relação aos direitos humanos foi amplamente questionada e só pode ser explicada com dinheiro e influência. O caso do Catar, de forma mais explícita, é mostrado no documentário “Esquemas da Fifa”, disponível na Netflix.

 “A escolha do Catar é muito difícil de explicar. Para a FIFA, é um desastre, ainda mais que dirigentes estavam nos holofotes por suborno. Daí o Comitê Executivo teve a brilhante ideia de votar no Catar. Sempre digo que quem culpa o Catar por sediar a Copa, deveria culpar a FIFA, porque a FIFA é o sistema. O sistema é a FIFA”, disse Guido Tognoni, ex-conselheiro de Joseph Blatter, no documentário. O próprio Blatter, ex-presidente da FIFA, já disse ter sido um erro essa escolha.

Realmente, é muito difícil explicar. 

Como um dos eventos mais importantes do mundo – se não o mais – é realizado em um país que pode punir até com pena de morte pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo? Um país que repreende protestos, inclusive silenciosos, como as braçadeiras dos capitães de seleções europeias. Repreende, inclusive, qualquer arco-íris: nem o da bandeira do estado de Pernambuco foi poupado da vigilância severa.

Um país em que as mulheres estão sujeitas à tutela masculina e a imprensa não tem liberdade (no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa de 2022, o Catar ocupa a 119ª posição entre 180 países). E um país em que os direitos trabalhistas, principalmente para trabalhadores imigrantes, praticamente inexistem. Não se pode deixar de citar que mais de 400 trabalhadores morreram na construção de obras de infraestrutura para a Copa, incluindo estádios.

Para explicar isso, a Anistia Internacional cunhou o termo sportswashing, que seria essa “lavagem esportiva” que governos e autoridades tentam fazer. Ou seja, quando usam o esporte e eventos para tentar ocultar suas violações. Um caso emblemático – que inclusive aparece no documentário que citei anteriormente – é o da Argentina recebendo a Copa de 1978 em plena ditadura militar. Podemos ir para um período mais antigo da história e lembrar das Olimpíadas de 1936 sediadas em plena Alemanha nazista. 

A questão que fica é se o Catar conseguirá “lavar” a sua imagem com essa Copa do Mundo. Eu acredito que não. Com as redes sociais, nem o país sede nem a Fifa possuem o poder de criar uma narrativa deslocada sobre o evento. A transmissão oficial pode não mostrar os protestos de torcedores iranianos, por exemplo, mas usuários nas redes sociais mostram. 

Meu palpite é que foi jogado um holofote ainda maior para as violações de direitos humanos no país e na região. Não é uma justificativa e nem ameniza a escolha da FIFA, mas em algum nível esse tiro pode ter saído pela culatra, pelo menos, para a opinião pública.

Enfim, tem como esquecer tudo isso, abrir a sua cerveja – aqui no Brasil porque lá não pode (e esse é o menor dos problemas, ok?) – e curtir a Copa? 

Não, não tem.

Mas tem como curtir a Copa e ainda sim criticar a Fifa e questionar com veemência a sua sede? 

Eu acredito que sim. Pelo menos é o que eu estou fazendo… 

E, de certa forma, até agradecendo ao calor do Catar pela mudança da Copa do Mundo para dezembro. Vocês já imaginaram qual seria o clima das festas de fim de ano se a gente não tivesse uma Copa logo após as eleições? Foi a oportunidade perfeita para reatar as relações que ficaram no meio do caminho.

E que venha o Hexa! A gente comemora com uma mão na taça, outra na consciência e com os olhos bem abertos para as próximas escolhas da FIFA.

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Liz Nóbrega

É jornalista do desinformante e pesquisadora no campo da desinformação.

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