Aparência, territorialidade, formas de expressão, gênero e religiosidade são as cinco dimensões em que se apresenta o racismo nas redes sociais, identificadas no Relatório “O racismo não anda só: as dimensões do racismo nas redes”, de autoria de Nina Santos, Maria Paula Almada, Rodrigo Carreiro e Ellen Cerqueira, pesquisadores do Aláfia Lab. O estudo, publicado nesta segunda-feira (22), analisou comentários e menções a 26 personalidades negras no Twitter, Instagram e YouTube de 1º de janeiro a 29 de março deste ano.
O relatório mostra como episódios como o que aconteceu ontem com Vini Jr são repetidos e reiterados. Mais do que isso, o racismo acaba sendo a pauta majoritária sobre personalidades negras. Ou seja, não importa o que elas fazem, seus talentos, suas conquistas, os casos de racismo acabam sobrepondo tudo isso. No caso de Vini Jr, por exemplo, das 50 publicações sobre ele que mais se disseminaram nas redes, 52% fazem referência a algum fato envolvendo racismo.
O relatório faz parte do Observatório do Racismo Online e buscou traçar um panorama do modo como a discriminação baseada em cor e raça atravessa as relações e é expresso nas redes sociais digitais.
“O que evidenciamos na pesquisa são as múltiplas faces que o racismo expõe no digital, tanto do ponto de vista da diversidade de termos ofensivos quanto da perspectiva das dimensões que o fenômeno engloba. E isso denota o enraizamento do problema em nossa sociedade”, afirma Rodrigo Carreiro, um dos pesquisadores responsáveis pelo levantamento.
Aparência
A aparência é uma das vertentes mais visíveis do racismo online, sempre ligada a tentativas de desumanização das vítimas. “Esses ataques usam com frequência comparações de pessoas negras com animais como ‘macaco’ e ‘urubu’”, destaca o texto.
Um dos casos emblemáticos de ataques voltados à aparência ocorreu com o jogador de futebol Vini Jr em janeiro deste ano, quando um boneco com camisa do esportista foi pendurado numa ponte em Madri simulando um enforcamento. No local, foi estendida uma faixa com a frase “Madrid odeia o Real”. O episódio aconteceu horas antes do jogo entre Real Madrid e Atlético de Madrid, pelas quartas de final da Copa do Rei, e viralizou nas redes.
Mesmo sendo um episódio notável de racismo, o caso, citado mais de 8 mil vezes no Twitter, chegou a ser questionado por pessoas que afirmaram que tudo não passaria de uma rivalidade entre times de futebol. Foram identificadas cerca de 60 menções com o termo “mimimi”, usado para descrever uma reclamação desnecessária.
Formas de expressão e território
Até mesmo as formas de expressão corporal, como atos de dança para comemorar um gol, não passaram despercebidas. Modos de mexer o corpo e interagir com outras pessoas foram questionadas e geraram uma série de ofensas racistas nas redes. Já os ataques a personalidades negras usando a palavra “favelado”, segundo o estudo, caracterizam as investidas relacionadas ao território.
O pesquisador Rodrigo Carreiro enfatiza que boa parte dos termos ofensivos racistas só são entendidos assim a partir de um contexto, ou seja, os termos em si, sozinhos, não dizem muita coisa. Por isso muita coisa escapa da moderação das plataformas.
Gênero
Os pesquisadores também apontaram que a intersecção entre ataques racistas e misóginos é significativa. Publicações chamando mulheres negras de grossas, mal educadas e chatas foram identificadas e caracterizadas como investidas de gênero. Também no Twitter, ao descreverem a influencer e ex-BBB Tina Calamba, os usuários utilizam, por exemplo, as palavras “grossa” (1.294 menções), “grosseira” (216 menções) e “arrogante” (80 menções).
Religiosidade
Ataques que fazem menção a religiosidade consistem em mais um aspecto do racismo nas redes sociais. “O foco principal dos ataques são as religiões de matriz africana, vistas como elemento do mau. O termo “macumbeiro” é frequentemente utilizado”, apontam os pesquisadores. Uma das principais vítimas de ataques desse tipo é o também jogador de futebol Paulinho, candomblecista que expressa abertamente sua crença religiosa nas redes sociais.
Metodologia da pesquisa
O estudo selecionou uma lista de 26 personalidades negras e brasileiras reunidas em cinco categorias diferentes: artistas, intelectuais, influenciadores, jogadores de futebol e jornalistas. Após a escolha e identificação dos perfis, que agregam nomes como Iza, Camila de Lucas e Lázaro Ramos, os pesquisadores buscaram coletar por meio de software e APIs as menções ao nome e/ou perfil dessas pessoas no Twitter, comentários aos posts feitos pelas personalidades no Instagram e os comentários em vídeos publicados nos canais do Youtube.
No Twitter, foram coletadas 388 mil menções, com 248 mil RTs e 3.9 milhões de curtidas. No Instagram, foram coletados 812 posts, que renderam 102 mil comentários e 231 milhões de curtidas. No Youtube, foram coletados 98 mil comentários, que renderam 198 milhões de visualizações e 19 milhões de curtidas.
A ideia é manter o monitoramento de casos e ampliar o trabalho do Observatório a partir de duas frentes. “De um lado, acompanhar mais perfis e catalogar esses casos a fim de extrair de forma mais objetiva as características do problema. De outro, continuar desenvolvendo o documento que reúne o léxico racista para que possamos cercar o fenômeno e ajudar no delineamento de estratégias de combate”, explica Carreiro.
O que é o Observatório do Racismo
O Observatório do racismo nas redes é um projeto do Aláfia Lab que visa ampliar a capacidade de monitoramento e combate a conteúdo racista publicado em redes sociais digitais. Atuamos na construção de métodos e técnicas capazes de organizar o conhecimento em torno das variadas formas de racismo em ambientes digitais. Em outras palavras, é um modo de abordar suas dimensões mais marcantes, não apenas a ofensa em si, mas em como essa ofensa pode se estruturar política, social e culturalmente.
O que é o Aláfia Lab
O Aláfia Lab é um laboratório de pesquisa que se concentra nas áreas que entrelaçam internet, política e sociedade. Seus projetos atuam no sentido de compreender não apenas as dinâmicas online, mas como elas impactam concretamente a vida das pessoas. O Aláfia atua nas áreas de (1) pesquisa, com a produção de conhecimento inovador sobre fenômenos na interface entre política digital e a vida cotidiana; (2) compartilhamento de conhecimento com a sociedade civil; e (3) advocacy, ao impactar as decisões políticas a partir da produção ampliada de conhecimento e de pesquisas aplicadas. O Aláfia Lab é um laboratório digital para a transformação social sediado em Salvador, Bahia, e é um dos realizadores do *desinformante.
Para ler a íntegra do relatório, acesse aqui.