Há anos me intriga a observação do historiador e professor da Universidade de Yale Timothy Snyder sobre a semelhança entre as mentiras nazistas e a campanha de desinformação de Donald Trump que levou à invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021, principalmente aquela que Snyder e outros estudiosos chamam de “A Grande Mentira”.
Se há uma grande mentira que coloca em movimento os mecanismos que levaram ao Holocausto e outra que preenche a capital dos Estados Unidos com pessoas dispostas a paralisar o processo de confirmação de um presidente eleito, há uma grande mentira por trás da depredação dos prédios dos Três Poderes na capital federal?
Snyder, em entrevista concedida à CNN norte-americana, caracterizou a Grande Mentira como algo que leva as pessoas a ignorar evidências, acreditar numa gigantesca conspiração como única forma de explicar a mentira como factível e compele a agir de forma radical. Numa coluna de opinião no New York Times, afirmou que a Grande Mentira dá novo ordenamento ao mundo, o que é estranhamente similar ao efeito do evento como descrito por Slavoj Žižek em Event: Philosophy in Transit (Penguin Books, 2014) – o que pode nos levar a discutir, em outro momento, a desinformação como mecanismo de simulação do evento, para fidelizar indivíduos a certos discursos e sentidos dados à realidade.
Buscando definir uma Grande Mentira Bolsonarista, podemos chegar em alguns pontos fundamentais da crença dos golpistas:
- A eleição foi fraudada numa grande conspiração, como a que teria acontecido nos Estados Unidos. Trump e Bolsonaro passaram meses antes e depois da eleição alardeando a possibilidade ou a certeza dessa fraude;
- Diferente do que ocorreu nos Estados Unidos, a fraude teria sido promovida pela cúpula do Judiciário, principalmente o STF e o TSE, personificados na figura do ministro Alexandre de Moraes;
- Como nos Estados Unidos, uma parte dos militares viria em socorro dos grupos golpistas e garantiria a reversão do resultado eleitoral;
- Diferente da conspiração norte-americana, a reversão não ocorreria pela interrupção de um processo legal, mas sim pela ocupação dos espaços do governo pelos militantes que levaria à queda do governo Lula, como ocorreu no Sri Lanka após uma longa temporada de protestos e renúncias de oficiais;
- Igual ao nazismo e aos trumpistas, os bolsonaristas identificaram neles mesmos o todo do “povo escolhido”, nos seus valores os valores nacionais e em alguns grupos de opositores, seus inimigos mortais.
A partir deste último ponto, nos afastando dos eventos históricos e do campo da política, podemos nos concentrar na comunicação. Como proposto por Ernesto Laclau, uma das características dos grupos populistas é tornar aquilo a que se opõem a sua fronteira. No nazismo, as características atribuídas ao judeu servem mais para descrever a aspiração nazista, como antítese, do que o judeu de fato. No bolsonarismo, a figura que faz esse papel fronteiriço é o esquerdista, o comunista ou o petista (as três palavras são intercambiáveis). Ao aglomerar pessoas a quem se atribuem características consideradas de fora do grupo, os indivíduos dentro destes sistemas podem não só extrair daí uma parte importante da sua identidade como extrair força da conformidade e tomar para si e para seu grupo a identidade totalizante do “povo” verdadeiro.
Dessa identificação como “escolhidos”, “puros” ou “verdadeiros brasileiros” também deriva a destruição dos prédios do governo e dos tesouros ali contidos. Como símbolos de uma nação que permite e acolhe um governo que representa, na visão dos golpistas, o oposto dos valores dos “brasileiros de verdade”, eles estão lá para serem destruídos e eventualmente substituídos pelos próprios símbolos eleitos pelo grupo. São brasileiros que não associam com o Brasil nada além daquilo que seus líderes indicam como elementos de brasilidade.
Aqui, também, há semelhanças e diferenças quanto a o que auxiliou a difusão e adesão às grandes mentiras em cada um desses três casos. O nazismo explorou o rádio como nova tecnologia para a difusão rápida das suas ideias da mesma forma como a alt-right norte-americana explorou o Facebook, o Twitter e o Instagram e os bolsonaristas usaram o WhatsApp, o Telegram, o TikTok e o Kwai.
Por conta das particularidades técnicas e culturais de cada contexto, as estratégias de comunicação das grandes mentiras foram diferentes. Os nazistas usaram a propaganda para atingir as massas e mobilizar os indivíduos em milícias ideológicas regionais que eventualmente substituiriam as forças de segurança do Estado, enquanto o Trumpismo usou a linguagem dos memes e das postagens nas redes sociais para articular as ações que levaram à tentativa de golpe.
No Brasil, as convocações em grupos criados em aplicativos de mensagens, os áudios feitos por pessoas de credenciais duvidosas – mas outorgadas pelos grupos uma certa voz de autoridade – e os vídeos com formato de relato testemunhal moldaram a ação dos golpistas. Aqui houve, talvez, a expressão mais clara do ideal fascista descrito por Walter Benjamin. Em vez de atender à vontade das massas de modificar as relações de posse, o fascismo permite uma expressão da sua vontade, idealmente violenta, sem nenhuma realização.
A Grande Mentira Bolsonarista inclui a tentativa de reprodução da revolta do Sri Lanka como ilusão mirrada de que transplantar os acampamentos, abastecidos de comida, confortos e discurso radicalizante por uma elite econômica regional amotinada e líderes religiosos oportunistas, dos QGs das Forças Armadas para as sedes dos Três Poderes dispararia automaticamente algum dispositivo capaz de apagar a eleição do ano passado.
Há também, nos casos de Alemanha e Estados Unidos, um cenário de exploração do ressentimento como afeto fundamental. Ressentimento dos alemães para com os judeus, ressentimento dos norte-americanos brancos de classe média com as políticas de igualdade racial que instigam o medo histórico da substituição dos homens brancos como parcela dominante da sociedade, como teorizado em cima dos dados de uma pesquisa recente. No Brasil, o cenário é de outra complexidade.
O elemento histórico explorado é o medo do comunismo e sua associação com a tirania, a expropriação, a permissividade com a criminalidade, a perseguição religiosa e a difusão da pobreza com enriquecimento das classes dominantes. Se existe algum ressentimento a ser explorado foi porque o PT, que tradicionalmente denunciou a desigualdade na sociedade brasileira, foi incapaz de promover mais igualdade e ascensão social duradoura nos seus anos no governo, mas esse não parece ser o afeto principal sendo explorado nos grupos golpistas.
No caso brasileiro um fator foi preponderante para a sustentação da Grande Mentira e fomento da violência: a ação das Forças Armadas. Mesmo abandonando os golpistas após a invasão da Praça dos Três Poderes, o comando militar foi conivente durante meses com os acampamentos de militantes, que hoje declaram que a parte final do plano era transferir esses acampamentos para dentro dos prédios do governo. Também nada fizeram para desmentir a desinformação que assolava esses amontoados de pessoas e incentivar comportamento civilizado e democrático e já haviam se engajado em campanhas de desinformação durante o governo Bolsonaro.
Assim como Snyder, penso que o caminho para um Brasil livre dessa grande mentira passa por uma repluralização da mídia e um comprometimento com fatos como um bem público. Diferente dele, que pensa os Estados Unidos, creio que aqui é necessário deixar de imaginar na política um mundo de heróis e vilões, desmistificando os movimentos sociais e a esquerda e identificando corretamente os problemas nacionais e suas origens, assim como os papéis e limites reais das instituições de Estado, como as Forças Armadas e o Supremo Tribunal Federal, e da sociedade civil, como as igrejas e os setores produtivos.