#Panorama2023
Esta entrevista faz parte da série #Panorama2023, entrevistas sobre o contexto da desinformação pós eleições, seus impactos na sociedade e futuros possível para combater o problema.
Professor no Departamento de Ciência da Computação na UFMG e coordenador do projeto Eleições sem Fake, Fabrício Benevenuto monitora campanhas de desinformação nos aplicativos de mensagens WhatsApp e Telegram. A partir da base de dados coletada por Fabrício e equipe, muitos jornalistas puderam fazer matérias reveladoras sobre as milícias digitais e sobre o modus operandi dos grupos de extrema direita nestes aplicativos. Agências de checagem puderam ter o trabalho facilitado também diante da amostra do Eleições sem Fake.
Passadas as eleições, Benevenuto acredita que o WhatsApp irá implementar as ferramentas de comunidades e super grupos, parecido com o que faz hoje o Telegram, o que pode agravar o fluxo desinformativo no app.
Confira mais uma entrevista da série #Panorama2023,
ANA D´ANGELO – Quero começar por saber sobre os monitoramentos do projeto Eleições sem Fake, que vocês fazem desde 2018. Como eles são feitos e o que apontaram este ano no Telegram e WhatsApp?
FABRÍCIO BENEVENUTO – O nosso monitoramento funciona da seguinte maneira: do WhatsApp, por exemplo, a gente tem um conjunto de celulares com os quais a gente entra em grupos que são públicos, que as pessoas convidaram, o administrador postou a URL do grupo na web ou colocou no Twitter. A gente vai lá, entra no grupo, coleta os dados do que é compartilhado neste grupo, seguindo todo o protocolo para não revelar a informação dos usuários. A gente remove qualquer informação que possa permitir a identificação das pessoas. É uma espécie de um Trending Topics do WhatsApp, o que está acontecendo dentro dos grupos que são públicos.
Então a gente pega o conteúdo e salva dentro de um banco de dados. É uma coleta razoavelmente complexa porque a gente passa os celulares para uma máquina, dentro dessa máquina a gente precisa processar para saber qual conteúdo é semelhante, praticamente idêntico ao outro, para poder computar essa similaridade e falar: “esse mesmo conteúdo está circulando em diferentes grupos”.
Daí colocamos num sistema que a gente chama de Monitor de WhatsApp, onde a gente mostra os conteúdos mais populares de um período. É uma ferramenta super útil para checagem de fatos, por exemplo, porque o jornalista pode ver o que está viralizando no WhatsApp num determinado período e decidir o que merece ou não checar. Também para não dar atenção para um assunto que ninguém está falando, uma teoria conspiratória, por exemplo.
E a gente fez uma coisa semelhante para o Telegram, apesar de no Telegram ser bem mais simples de fazer a coleta porque ele tem uma API, um caminho que não precisa de celulares para coletar, então a gente coleta via essa API os dados que são públicos nos grupos que nos interessam.
Então a gente usou a mesma abordagem para identificar grupos políticos, tanto de esquerda quanto de direita, nos dois sistemas, para esse monitoramento. A gente dá acesso a esses sistemas para um conjunto de jornalistas. Um volume enorme de pessoas já me pediu acesso a esses sistemas, equipes de checagem de fatos de diferentes agências, e a gente também trabalhou gerando levantamentos específicos para jornalistas em determinadas situações.
A gente não tem um sistema de busca nesses dados, mas consegue gerar de uma maneira semiautomática ali e gera um levantamento de determinados temas, do que está acontecendo dentro do WhatsApp e Telegram, a gente também faz para o TSE para mostrar o que está acontecendo em grupos radicais. Por exemplo, antes de ser notícia, conseguimos verificar o que está circulando e que é do interesse do TSE, como ataques às urnas, por exemplo.
ANA D´ANGELO: Qual foi o impacto social desse monitoramento esse ano específico, o que você pode falar a esse respeito?
FABRÍCIO BENEVENUTO: Foram inúmeras reportagens que a gente ajudou e isso de certa forma traz um entendimento maior para a sociedade do que está acontecendo dentro desses espaços. Como as campanhas de desinformação estão atuando dentro de aplicativos de mensagens, qual é a estratégia que está sendo utilizada. Então foram diversas reportagens…
ANA D´ANGELO – Em relação a 2018, dá para a gente fazer um comparativo desses fluxos de desinformação, o que mudou etc
FABRÍCIO BENEVENUTO – Dá. Em 2018 saíram muitas reportagens que utilizaram os dados e havia ali um entendimento maior das campanhas de desinformação. Tem uma que me lembro e chamou atenção e foi checada pela Agência Lupa. A desinformação tinha intenção de criar polarização, colocar de forma antagônica coisas que não necessariamente o são como movimento feminista em contraposição à igreja. Mensagens agressivas e que causaram repulsa tanto de religiosos como de feministas.
Então essa engenharia de polarização aconteceu muito pesadamente aqui no Brasil, com o movimento LGBTQIA+ e aí naturalmente os candidatos se posicionam em uma daquelas vertentes e reforçam aquele sentimento. Quando os candidatos mencionam estes aspectos muito caros para as pessoas, religião, orientação sexual, raça etc, a pessoa define sua posição para um lado e não quer saber do outro. Então nas redes o movimento do conteúdo em 2018 era para reforçar essa divisão.
Este ano vimos isso de novo, mas também coisas novas. Vimos um ataque muito grande às pesquisas eleitorais, em relação às urnas, ao processo eleitoral, ao Supremo, com uma construção mais golpista que em 2018. Porque os ataques às urnas aconteceram em 2018, mas em termos de volume e estratégia este ano foi diferente.
ANA D´ANGELO: Fabrício, hoje você e todos os pesquisadores só conseguem monitorar grupos abertos, que não precisam da autorização dos participantes. Mas isso tem se mostrado às vezes limitado para identificar alguns movimentos da rede, por conta desses grupos fechados. Como que a gente pode lidar com isso, pensando aí no trabalho do monitoramento?
FABRÍCIO BENEVENUTO: Olha, esse é um ponto complicado, porque a gente precisa definir uma estratégia. Aqui na UFMG partimos do princípio que a pessoa foi a um espaço público e convidou outras pessoas para integrar o grupo. Então a partir do momento que ele fez isso, qualquer um pode entrar naquele grupo. Então é o grande responsável por permitir que qualquer um pudesse entrar no grupo, coletar os dados e tudo mais. Então nos limitamos a não entrar em grupos que são privados.
Agora, assim, vamos falar de limitação para os pesquisadores. A única informação que a gente tem do WhatsApp sobre, por exemplo, número de pessoas que usam, se não me engano, é de 2017, uma estatística que ele soltou sobre o número de usuários e tal. Esse é o único dado oficial que o WhatsApp soltou sobre seus usuários, ele não dá informação nenhuma. Não tem como a gente saber o que está acontecendo dentro da plataforma, a não ser com uma estratégia como essa que a gente criou. E que é limitada, a gente não sabe o quão representativo são os dados que a gente coleta. É um olhar pela fresta e com suas limitações. E vai piorar, uma perspectiva futura aqui, tá? O WhatsApp vai colocar agora os super grupos e a lei o permite colocar. Então eles vão fazer, porque eles estão perdendo espaço para o Telegram. São grupos com mais de mil usuários, em outros países já está implementado. O WhatsApp está esperando passar a eleição aqui no Brasil.
Além de tudo, tem outra funcionalidade, que é a de comunidades. O que isso vai permitir fazer? Você pode agora criar um grupo enorme, bem maior, mandar mensagem para mais gente.
As redes de desinformação utilizam muito os grupos públicos nesse sentido: é um grupo em que o ativista chamou lá na web para todo mundo entrar, esses grupos são muito ativos, as pessoas compartilham um monte de coisa ali dentro, os administradores provavelmente – e aqui é a parte que eu especulo – recebem informações de campanhas diretamente e aí mandam para dentro dos grupos públicos e a coisa se espalha para outros grupos públicos e até para grupos privados, e assim vai atingindo a rede toda.
O grupo público funciona como uma espinha dorsal do espalhamento da desinformação quando a campanha quer atuar neste espaço. Aumentando o tamanho dos grupos, e qualquer facilidade para viralização, essa espinha dorsal ganha força. Uma nova ferramenta que o WhatsApp vai implementar são as comunidades e, até onde eu entendi, as comunidades vão permitir que uma pessoa administre mais de um grupo de maneira mais fácil. Você vai poder administrar mais de um grupo e disparar uma mensagem para vários desses grupos ao mesmo tempo, administrar sua comunidade, seus vários grupos temáticos. Então vai facilitar esse trabalho hierárquico de espalhamento da desinformação.
O Telegram tem seus problemas também, ele já permite criação de grupo enorme, com mais de 200 mil, só que quando uma mensagem é enviada no Telegram, se eu mando uma mensagem para você e você repassa para uma outra pessoa, essa outra pessoa vai ver que essa mensagem partiu de mim, fui eu que comecei. E isso não acontece no WhatsApp. Esse detalhe é crucial para a gente saber quem começou uma campanha de desinformação. No WhatsApp isso se perde e no Telegram não.
ANA D´ANGELO: A nossa tentativa brasileira de regular a internet acabou flopando ano passado. Especialmente os artigos sobre o rastreamento deste primeiro emissor da desinformação nos apps de mensagem foram vetados. A questão fundamental é: os aplicativos de mensagens são, de fato, ferramentas interpessoais, para troca interpessoal, ou se transformaram em veículos de comunicação? Sendo assim, qual a regulação que cabe sobre os aplicativos de mensagens? Como você acredita que possa haver alguma regulação dessas ferramentas sem ferir a privacidade dos usuários?
FABRÍCIO BENEVENUTO: Precisa debater. A gente vive num espaço em que surge uma tecnologia nova, não existe uma lei para ela, vale-se da ética. Essas empresas realmente não estão se preocupando muito com valores éticos, morais, qual impacto que isso pode gerar para a sociedade, eles estão querendo ganhar do concorrente.
A gente como sociedade precisa chamar a atenção, sentar e criar uma regulação. Mas precisa ser com cuidado, porque qualquer regulamentação que fique “furada”, ela pode ser usada para perseguir as pessoas, para limitar a liberdade de expressão e ninguém quer isso.
Assim, ter alguma regulamentação malfeita seria um fiasco, o pior cenário.
Eu trabalho muito mais num lado que parece o lado do jornalismo, que é o de apontar o problema, mostrar, tentar fazer um esforço de mostrar o tamanho, a dimensão do problema e como ele está afetando a gente.
ANA D´ANGELO: Fabrício, você falou aí de vários setores que estão trabalhando no combate à desinformação, Direito, Comunicação, Computação. É possível a gente vislumbrar um esforço coletivo e contemplar políticas públicas na direção de um ambiente digital mais saudável? Especialmente agora que houve aprovação da Lei de Serviços Digitais na União Europeia, acredita que vá chegar a vez do Sul Global?
FABRÍCIO BENEVENUTO: Eu tenho esperança de que sim. Tem vários pontos consensuais no nosso projeto de regulação que está no Congresso, como, por exemplo, a obrigatoriedade de a empresa ter sede e um representante no Brasil. Mais cedo ou mais tarde, este pacote básico vai ser aprovado.
Não sei se vai resolver todos os problemas, porque tudo é muito novo, ainda surge tecnologia que se adapta. Quando a lei entra em vigor chega uma coisa nova e ela acaba tendo um papel disruptivo no que existe em termos de legalidade.
O caminho passa por uma construção dentre as várias áreas. A computação faz a medição dos dados e chega nos espaços mais difíceis de ir, o jornalismo mostra que a campanha desinformativa está acontecendo ali e o Direito pode entender mais profundamente o problema. É um problemão que a sociedade está vivendo hoje,
ANA D´ANGELO: Vocês continuam com o projeto ano que vem? Eu fiquei sabendo que vocês estão sem dinheiro para alguns projetos, quer aproveitar o espaço para ´chorar as pitangas´?
FABRÍCIO BENEVENUTO: Nosso projeto teve bons financiamentos nesse período entre as duas eleições, mas hoje o financiamento de pesquisa está inexistente praticamente. Eu quero muito que na próxima eleição a gente consiga atuar novamente, eu acho que a gente tem que monitorar propaganda no Youtube, no Facebook, a gente tem que monitorar Telegram, WhatsApp, a gente precisa dar toda a atenção para os vários espaços onde as campanhas de desinformação podem acontecer, e para isso a gente precisa de financiamento, parcerias. Eu acho que a gente está totalmente aberto aí, nossos financiamentos terminaram agora nessa última eleição, então a gente tem que sentar e programar o que vem pela frente com uma certa urgência.