#Panorama2023
Esta entrevista faz parte da série #Panorama2023, entrevistas sobre o contexto da desinformação pós eleições, seus impactos na sociedade e futuros possíveis para combater o problema.
Em meio a todas as transformações que a prática jornalística vem passando, uma delas é a própria descredibilização do jornalismo profissional. As pessoas têm equiparado uma matéria jornalística, feita com checagem, apuração, entrevistas e outras ferramentas a qualquer conteúdo construído pelo vizinho ou colega de grupo nos aplicativos de mensagens. A falta de parâmetro sobre o que é confiável é um dos problemas graves do nosso tempo e o jornalismo tem um papel central aí, mas não pode retomar ao formato que sempre teve. Na opinião de Carol Monteiro, uma das fundadoras da Marco Zero Conteúdo e também diretora da Escola de Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco, o jornalista precisa assumir o papel de desmentir as narrativas falsas que estão circulando nas redes sociais, mas também deve avançar na ideia de ser um disseminador de boas práticas no sentido de educar a população para a navegação neste conturbado contexto informacional. Leia a entrevista completa da série #Panorama2023.
RODOLFO VIANNA – Quais os desafios do jornalismo no ecossistema digital de informação?
CAROL MONTEIRO – É uma área que segue em ebulição porque todas as práticas, tanto de produção, de apuração, quanto de circulação, de distribuição, recepção de conteúdo jornalístico, tudo isso mudou. E eu não sei se a indústria e a academia processaram todas essas transformações porque elas foram muito rápidas. A gente ainda segue construindo soluções e identificando novos problemas que essa revolução tecnológica trouxe. Mas algumas coisas já seguem consolidadas. A gente tem uma audiência que é extremamente participativa, tem a possibilidade de interação com audiências, acesso a um volume muito grande de dados, não são só dados que facilitam todo o processo de apuração, mas também dados para a gente interagir, se relacionar com essa audiência.
Tem uma quebra do modelo de negócios tradicional do jornalismo nos forçando a pensar em outras formas de sustentabilidade para organizações jornalísticas, com fins lucrativos e sem fins lucrativos também. E a gente tem uma infinidade de novos modelos de organizações jornalística: fact checking, jornalismo de dados, um jornalismo que se apresenta como jornalismo de causa, é uma diversidade muito grande de organizações e grupos fazendo jornalismo e falando por si próprios. Todas as práticas do jornalismo e do jornalista são diferentes no século XXI, então isso dá muito pano para manga para reflexão e para construção de soluções inovadoras para nossos problemas.
RODOLFO VIANNA – Como trabalha o jornalismo profissional nesse combate à desinformação, às fake news?
CAROL MONTEIRO – Os jornalistas não são os únicos atores nesse combate à desinformação, mas eu acho que a gente tem um papel fundamental em separar o joio do trigo, apontar os caminhos, desconstruir essas narrativas falsas ou falaciosas, que circulam livremente na internet. Isso não é fácil porque a disseminação de conteúdo falso é muito mais rápida e mais abrangente do que o jornalismo consegue dar conta de desmentir e de checar.
Mas o papel é fundamental no sentido de, primeiro, alertar para a existência da indústria da desinformação, de que existem grupos econômicos e políticos organizados para distribuir informações falsas com vários interesses.
Segundo, na medida do possível, tentar checar, desmentir e desconstruir essas narrativas. Acho que uma estratégia super importante é a valorização do jornalismo profissional. Abrir essa caixa preta do jornalismo e mostrar para as pessoas o que é uma informação jornalística e porque ela tem um valor agregado, tem uma qualidade superior a qualquer outra informação… ou ela pode ter, deveria ter. E o jornalista passa também a atuar aí com um papel muito forte na educação. É um educador também de certa forma para a própria mídia, trabalhando em conjunto com o pessoal da educação, com as plataformas.
Há um papel de pressionar as plataformas e cobrar atitudes em relação à disseminação desses conteúdos e também cobrar do poder público. Se bem que estou quase convencida de que leis por si só não funcionam, viram letra morta muito fácil dentro desse contexto. Tem casos de outros países que tentaram combater a desinformação com legislação e nem sempre é eficiente. Então realmente a melhor solução é a educação e o jornalista vai precisar de muito suporte de outras áreas para contribuir com esse processo de educação midiática da população, que tem que começar na infância e na escola.
RODOLFO VIANNA – Muitos avaliam erros jornalísticos como “fake news”, principalmente aqueles que gostam de propagar desinformação. Qual é a diferença entre um erro jornalístico, que existe como em qualquer profissão, de uma fake news, Carol?
CAROL MONTEIRO – Eu acho que é a intenção. O que diferencia realmente é a intenção. A quem essa desinformação favorece, qual é a intenção por trás dessa desinformação ou desse erro?
Se foi realmente um erro inocente, um erro que acontece porque somos todos humanos e estamos passíveis de erros, a retratação resolve esse problema. Agora, a gente também não pode achar que os erros da imprensa profissional são totalmente inocentes. A gente precisa de educação midiática de novo, porque todo jornalismo é posicionado. Agora, esse posicionamento é transparente? Eu acho que a transparência desse posicionamento é fundamental e é o que diferencia o jornalismo de qualidade, o jornalismo que eu acredito, do jornalismo profissional que eu não acredito e não me representa.
Por isso a leitura crítica da mídia é tão importante. Você lê criticamente todo conteúdo que recebe, mesmo que seja jornalístico, mesmo que venha de veículo que você apoia e confia e te represente.
RODOLFO VIANNA: Nem todo jornalismo profissional necessariamente é um jornalismo de qualidade, então?
CAROL MONTEIRO – Não, com certeza não. Nunca foi, né? Na verdade, por uma série de razões e até pelas condições. A gente vê hoje, infelizmente, redações muito precarizadas. A gente vê uma série de problemas no jornalismo profissional que faz com que obviamente ele não tenha a qualidade que deveria ter. Com a função social que o jornalismo tem, ele deveria se preocupar muito com a qualidade dos seus conteúdos, dos seus profissionais etc., mas a gente sabe que isso não acontece por uma série de razões: econômicas, políticas, culturais. A quem interessa o jornalismo de qualidade? Ser profissional não é a garantia da qualidade do jornalismo. Nunca foi, na verdade, e nesse contexto continua não sendo.
RODOLFO VIANNA – Aproveitando também esse debate, você acredita que a gente se encontra no fim do dito jornalismo declaratório para dar lugar ao jornalismo de dados?
CAROL MONTEIRO – Eu queria acreditar, mas não é isso que eu vejo em algumas práticas, principalmente na chamada mídia tradicional ou mídia hegemônica. Eu continuo vendo uma preocupação em ouvir o outro lado quando o outro lado é o desinformador, mas ainda assim, às vezes, esse outro lado é trazido para o debate desvirtuando completamente o debate público.
Vejo, inclusive, pessoas que deram declarações nas suas redes sociais, às vezes declarações banais, coisas bobas, mas têm suas declarações distorcidas numa reportagem jornalística e depois voltam para suas redes para dizer assim: “olha o que eu falei, olha o que saiu”. Então, assim, não morreu, infelizmente não morreu.
E essa questão que você trouxe em relação aos dados. Uma vez eu estava pela Marco Zero respondendo a uma entrevista e as pessoas… era entrevista sobre inovação, era uma pesquisa acadêmica sobre inovação no jornalismo. E aí a pergunta era: no que a Marco Zero é inovadora? E aí a gente parou, estávamos eu e o Sérgio Miguel, que também é um cofundador, e o Sérgio deu uma resposta que eu achei muito interessante, que ele disse: “poxa, a gente nunca parou para pensar sobre isso, a gente nunca..”, claro que a gente pensa e fala sobre inovação e busca essa inovação, mas a gente chegou à conclusão que a Marco Zero tá se propondo a fazer um jornalismo “vintage”, né?
A gente, na verdade, está tentando resgatar o jornalismo investigativo, de qualidade, o jornalismo baseado em dados, baseado em fatos. Um jornalismo que é transparente em relação aos seus posicionamentos, práticas e aos seus formatos. Ele é quase meio vintage, porque os dados sempre foram matéria-prima do jornalismo, nunca foram somente as declarações. Então, eu acho que o jornalismo precisa dos dados, como os dados também precisam do jornalismo. Quem publica os dados, quem divulga os dados, precisa também do jornalismo para dar contexto. Porque eu acho que o papel do jornalismo nem é divulgar o dado, na verdade, é contextualizar esse dado, provocar a reflexão, analisar e criticar esses dados.
RODOLFO VIANNA – A gente está acompanhando recentemente um aumento dos ataques aos profissionais da imprensa. Como você encara também a necessidade da proteção do profissional do jornalismo? E, ao mesmo tempo, aproveitando também, você se considera otimista para os próximos tempos, particularmente no Brasil, e como você encara a função do jornalismo para os tempos que virão?
CAROL MONTEIRO – A segurança dos jornalistas é fundamental, a segurança física, a segurança digital. Acho que as organizações e as empresas são responsáveis por essa segurança, precisam considerar essa segurança em todos os aspectos. No Marco Zero a gente tem essa preocupação, por exemplo. Na cobertura das eleições os repórteres foram para rua acompanhados de profissionais de segurança para observar o contexto, enfim, ainda bem que não aconteceu nada. Foram coberturas muito tranquilas, mas a gente discute muito isso do ponto de vista institucional.
O Marco Zero sempre foi muito responsável pela segurança dos jornalistas. Esses ataques, eu acho que eles só demonstram a relevância que o jornalismo ainda tem porque não haveria ataques se não houvesse medo do trabalho de qualidade feito pelos jornalistas. Se as pessoas não tivessem o que esconder, elas não teriam medo dos que trabalham para revelar.
A gente vê figuras institucionais, assim, o Presidente da República, por exemplo, e outras figuras de autoridade atacando jornalistas e isso não é em vão, é porque a atividade do jornalismo permanece fundamental para a sociedade, para a defesa do interesse público, para a defesa dos direitos humanos.
Sobre os tempos que virão, eu sou otimista. Aí falando um pouco como professora, toda vez que eu entro numa sala de primeiro período de jornalismo, eu vejo que tem adolescentes, jovens interessados, que vêm até a universidade porque acreditam nessa profissão, porque acreditam nesse campo, porque querem ser jornalistas, eu me encho de esperança. Mesmo que algumas questões do dia a dia vão tirando um pouco esse otimismo, eu acho que estar muito próximo dessa geração de jovens jornalistas me dá esse otimismo necessário para continuar e para acreditar.
Eu acho que fenômenos muito interessantes também nos deixam otimistas, como esse jornalismo que é feito nas periferias, um jornalismo muito vivo, muito pulsante, muito inovador.
Eu acho que os jovens e toda a diversidade que o jornalismo vem buscando e vem trazendo, me fazem estar bastante otimista sim. E, lógico, um novo governo, né? A gente tem tudo para acreditar que vai ser diferente e que os jornalistas serão bem tratados como merecem ser, pelo menos pelo próximo Presidente da República.
RODOLFO VIANNA – Um respeito a nossa profissão, né?
CAROL MONTEIRO – É isso, a gente vai ter, pelo menos do Presidente da República, o respeito que a gente merece.