Mesmo com todos os livros lançados desde a eleição que levou Donald Trump à Casa Branca que abordam a questão da desinformação, até 2021 eu ainda sentia que perguntas que eu tinha sobre o assunto – desde que meus alunos do ensino médio começaram a gritar em coro palavras de ordem da campanha presidencial norte-americana de 2016 – seguiam sem explicação. Eu sentia falta de um livro que explicasse como o ambiente comunicacional poderia ter contribuído para as votações expressivas não só em Trump, mas também em Jair Bolsonaro dois anos depois.
Se meus alunos gritavam “Lock her up!” ou “Build the wall!” isso não me surpreendia, era um fenômeno da propaganda política nos ambientes digitais e estava por toda parte nos espaços da internet que esses jovens frequentam. Minha primeira preocupação era quanto à resistência deles (e de outros como eles) a fontes de informação fidedignas. O que chamava a atenção imediatamente era a adoção indiscriminada do termo “fake news” pela imprensa em geral e a ubiquidade do termo que se seguiu. Enquanto nos Estados Unidos o insulto surge na campanha de Trump e se espalha como fogo em palha seca entre seus apoiadores, quem introduziu “fake news” às audiências brasileiras foi a própria imprensa, acriticamente usando uma expressão criada para atacá-la e deslegitimar sua atuação. No jornal A Folha de S.Paulo, o número de usos do americanismo ou sua versão traduzida “notícias falsas” foi de zero em 2014 para 461 em 2016 e chegou a mais de 1.900 menções em 2018.
O Segundo problema que eu identificava era que as campanhas de desinformação não estavam restritas a uma narrativa enganosa, qualquer que esta fosse. Elas também se esforçavam para colocar em dúvida a capacidade de qualquer outra instituição produzir conhecimento ou relatos verificáveis ou verdadeiros. Três instituições, especificamente, recebem ataques de agentes desinformativos de forma constante: o Judiciário, as universidades e o jornalismo.
Como jornalista, os ataques à integridade de colegas de profissão e veículos me intrigavam acima de tudo. Eu enxergava neles uma mistura de insultos mentirosos com meias verdades, erros históricos amplificados e contestações da objetividade e viés político dos profissionais. E este foi o meu ponto de partida para uma pesquisa que começou em 2018, antes do período eleitoral, e evoluiu para o livro As Cinzas e os Fatos, concluído e publicado em 2022. O monitoramento da mídia norte-americana e estudos naquele país me levou a fontes como os jornalistas James Ball, Matthew D’Ancona e Evan Davis e filósofos como James McIntyre que encampavam a ideia da existência de um momento de pós-verdade, um período de certo ineditismo no grau de valorização das emoções em comparação com os fatos e a minha pesquisa encontrou evidências que dão suporte a esta teoria.
Cacofonia informacional
Apoiado, também, nas teorias de Lyotard sobre a legitimação e literatura sobre fascismo, radicalização, comunicação política, minha pesquisa evoluiu para um ensaio observando como o jornalismo, a turbulenta transição da mídia noticiosa para a internet e a entrada de bilhões de pessoas nas chamadas redes sociais produziu um ambiente comunicacional dominado pela cacofonia informacional sem mediações além dos algoritmos, da capacidade dos indivíduos de manipular estes mecanismos e dos agrupamentos relacionais baseados em afetos.
As Cinzas e os Fatos narra como agentes políticos principalmente ligados à extrema direita global se aproveitaram desse ambiente para amplificar uma comunicação focada na desarticulação das instituições democráticas tradicionais e em criar uma percepção de que a verdade, inalcançável e escondida atrás de um véu de opiniões partidárias e manipulações midiáticas, só poderia ser revelada pela fé nos valores individuais e familiares e pela experiência empírica dos sujeitos, rejeitando os intelectuais e os especialistas.
Por meio de análise e extensa pesquisa dos principais jornais, foi possível traçar como esta estratégia comunicacional levou à ascensão de uma direita radical nos Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Brasil, Filipinas, Hungria, Turquia, Polônia, Rússia e outros países onde líderes foram capazes de formar grandes alianças populares costurando grupos díspares e com demandas variadas em torno de bandeiras conservadoras, neoliberais e autoritárias, articuladas por diversas narrativas falsas e discursos fundamentados em relatos sem verificação e com ressentimentos históricos, regionais, étnicos e raciais. Ao chegar ao poder, estas lideranças se dedicaram a desvalorizar e desmontar o aparato estatal organizado ao longo de décadas para prevenir que o Estado fosse tomado por aproveitadores e se protegeu com o apoio conquistado pela articulação popular e a defesa dos interesses de elites financeiras.
Degradação da democracia
O livro propõe que este período histórico único se instala graças ao amadurecimento técnico de ferramentas capazes de entregar a certas lideranças com auspícios autocráticos formas de radicalizar uma grande massa de pessoas e mantê-las radicalizadas de forma a garantir resultados eleitorais, mas que esta consolidação de poder não é o resultado da pós-verdade. A última parada neste caminho é a degradação da democracia ao ponto que, em determinadas circunstâncias, podemos esperar o aumento da violência, o vigilantismo de pessoas mal-informadas ou mal-intencionadas, a militarização da sociedade e até mesmo tentativas de golpes de estado, como o que aconteceu nos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021.
A desinformação, potencializada pelos mecanismos da internet, surge como uma fonte de caos social e comunicacional que ameaça as instituições que resguardam a democracia. As estratégias que surgiram ao longo da última década são experimentais e possuem diversas limitações. Leis e soluções jurídicas tendem a virar armas nas mãos de regimes autocráticos. Programas de alfabetização digital são lentos nos resultados e vulneráveis à politização e à radicalização. O jornalismo, com suas agências de checagem, sofre com suas limitações históricas e a com a percepção geral de que suas práticas são enviesadas.
“As Cinzas e os Fatos” funciona como um aviso, não apenas pela extrapolação do que pode acontecer no Brasil a partir da observação daquilo que aconteceu nos Estados Unidos, mas pela análise dos métodos da desinformação e as intenções de seus agentes. As campanhas informacionais nos ambientes digitais têm a capacidade de radicalizar e são embasadas em poderosas ferramentas de captura da atenção, previsão e modelização de comportamento. A mensagem, no entanto, é positiva: com regulação e uso responsável dessas ferramentas, não há motivo para que estas tendências não possam ser revertidas.