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ago 15, 2022 | Pontos de Vista

Qualquer semelhança não é mera coincidência: os camisas neons

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A História, em sua dinâmica, é permeada por fenômenos “neovelhos”. Antes de serem uma contradição, são resultados das condições históricas de cada período (sociais, econômicas, culturais e tecnológicas). Em que pese as diferenças, as semelhanças já são assustadoramente grandes para compreender a motivação e a ação de grupos de haters, trolls e milícias digitais em analogia àquelas das milícias políticas fascistas do início do século XX.

A disseminação de mentiras, o amedrontamento e a agressão tampouco são ferramentas novas na política. A força de sua presença na esfera pública, entretanto, sempre foi inversamente proporcional à força da democracia vivenciada. Não raro foi prenúncio de tempos sombrios da prevalência do arbítrio e do totalitarismo. 

Enquanto agentes políticos, os “camisas negras” na Itália foram o aríete e a pavimentação do caminho de ascensão de Benito Mussolini na Itália dos anos 1920. Os “camisas pardas”, ou SA, cumpriram o mesmo papel, no mesmo período, para a ascensão de Hitler na Alemanha.

Estas milícias políticas eram formadas majoritariamente por jovens movidos pela descrença na política institucional, indignados com a falta de “ordem”, conservadores no plano da moral e dos costumes, patriotas exaltados e ávidos pelo resgate de um mítico orgulho nacional. Paranoicos, viam por todos os lados ameaças aos valores que julgavam serem caros a qualquer “cidadão de bem”, alarmados com o que consideravam ser o estado de degeneração em que se encontrava a sociedade, além de apontar inimigos “externos” que ameaçariam a unidade da nação: anarquistas, comunistas, judeus, ciganos, homossexuais etc. Tudo dentro de um contexto de acentuada crise econômica, que minava expectativas positivas sobre o futuro se nada fosse feito.

Em que pesasse a existência de uma organização formal, a ação destes grupos na maioria das vezes era espontaneísta e pulverizada: respondendo a algum estímulo, alvoroçavam-se contra artistas, intelectuais, sindicatos (e sindicalistas), partidos políticos (e militantes), jornais (e jornalistas) ou qualquer coisa que julgavam ser uma ameaça à sua crença moral e política, usando da intimidação, humilhação pública e violência. 

A principal função era a de criar distúrbios, demonstrar força e silenciar os contrários. Cachorros loucos, cresceram exponencialmente nos anos de 1920 e 30, sob o estímulo de determinadas lideranças e, importante frisar, sob a cumplicidade silenciosa de outros atores políticos que viam neles oportunas ferramentas de ataque aos seus inimigos comuns. O que se sucedeu já é sabido. 

Chegamos ao século XXI e nos confrontamos com as milícias digitais. Elas não podem mais ser encaradas como agentes políticos secundários ou menores, só porque existem na esfera virtual da vida. A palavra “virtual” deriva do radical latino “virtus”, que significa “força” ou “potência”. Uma acepção de virtual é aquela que toma alguma coisa como detentora de força ou que carrega em si a potência de existir. “Virtual”, portanto, não é sinônimo de “irreal”, “inexistente”: virtual é aquilo que carrega em si a possibilidade/potencialidade de se tornar real ou até mesmo de se equivaler ao real.

As tecnologias do nosso tempo permitem o funcionamento de comportamentos inautênticos, os “bots” (que são máquinas que fingem ser perfis virtuais de pessoas reais) que, por sua vez, estimulam e engrossam o engajamento orgânico de cidadãos de carne e osso. Para aqueles que têm uma certa idade, facilmente se lembrarão do bom e velho termo “agitadores” – que sempre existiu. Agora, porém, esses agitadores não saem mais às ruas, mas sim escrevem linhas de programação que inundam a arena política digital. 

Sobre o discurso, pouco mudou também: o discurso violento e a desinformação seguem sendo alimento para cultivar o ódio contra adversários; os xingamentos, ferramenta de acirrar os ânimos, e a intimidação promotora de silenciamentos. 

O que aqui é trazido como semelhança entre os “velhos” e “novos” grupos de atuação política é justamente o método: não se trata de criticar, expor a diferença e/ou o posicionamento contrário a algo, posturas necessárias e que cabem num regime democrático. O que se dá nessas ações, por sua vez, é a tentativa de silenciamento do contrário mediante a perseguição, intimidação, desqualificação e violência. 

Há de se perder, de uma vez por todas, um certo olhar complacente para com esses grupos motivado pelo caráter esdrúxulo, caricatural e profundamente ignorante de algumas de suas lideranças e, em maior escala, de seus membros. A História já demonstrou que não é por ser insana que uma ideia deixa de conquistar corações e mentes na política. Se vimos o surgimento dos “camisas negras”, dos “camisas pardas” e afins, e sabemos do seu papel na consolidação de regimes autoritários, talvez estejamos em frente a algo mais “moderno”, ao menos na cor: os “camisas neon”, que devem ser firmemente repudiados pelos defensores do jogo democrático.

 

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Rodolfo Vianna

Jornalista, doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Autor da dissertação “Jornalismo, ironia e ‘informação’”. Pesquisa estratégias discursivas em gêneros jornalísticos.

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