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acervo pessoal

jun 1, 2022 | pontos de vista

Sorria, você faz parte de um experimento comportamental

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Quando as redes sociais surgiram, elas eram um pouco diferentes do que são hoje. Conectavam as pessoas, mas ofereciam as informações de acordo com alguns critérios meio óbvios: o que seus amigos ou pessoas conectadas publicaram, ordem cronológica etc. Para quem vinha do Orkut (saudades?), a ideia de uma timeline sem fim já era assustadora o suficiente para chocar. Pouco mais de uma década depois, parecem exercício de escolinha de criança.

Aos poucos, fomos ingressando em um experimento comportamental de longo prazo do qual todos nós somos parte. Quanto mais dados elas coletam sobre você, mais ela sabe o que ganha sua atenção e o que lhe agrada. Como esses dois atributos são chave para ganhar mais tempo e engajamento do usuário, eles passam a gerar um circuito de realimentação do algoritmo. Em dez anos, sabem mais da gente do que a gente mesmo.

Sean Parker, primeiro presidente do Facebook, descreveu o sistema como a criação de mecanismos para gerar “circuitos de feedback de validação social” baseados em pequenas “injeções de dopamina” Parece simples: sabendo que o cérebro humano busca o tempo inteiro pertencimento, aprovação e confirmação de seus pressupostos, oferecer isso tudo é meio caminho andado para eu te manter na minha plataforma e conseguir fazer com que você se engaje ali (publique, curta, compartilhe, marque etc.).

Isso tudo não seria um problema grande se não estivéssemos em um momento em que as pessoas foram migrando seus hábitos de consumos de informação e notícias de meios jornalísticos para as próprias redes. No momento que as redes assumem esse papel de ambiente informacional, voltamos 99 casas no jogo da democracia.

Isso porque desde o pós-guerra até 2010 havíamos conseguido colocar de pé um sistema de comunicação que estava minimamente sustentado em valores relevantes para o interesse público. O jornalismo profissional guiava o processo de seleção de notícias e de pontos de vista. A curadoria se guiava, pretensamente, pelo interesse público. Criava-se uma agenda comum para a sociedade. Os veículos dependiam de sua credibilidade para se manter vivos no dia seguinte.

É claro que esse sistema tinha milhares de problemas que afetavam pluralismo e diversidade. Informações eram por vezes manipuladas, vozes eram excluídas, havia concentração econômica. Mas conhecíamos os remédios que mais funcionaram mundo afora: sistemas públicos de comunicação fortes e regulação democrática.

Esse modelo perdeu prevalência e as redes reestabeleceram o ‘estado de natureza’, agora digital, acelerado e impulsionado. Credibilidade já não é chave se você entregar audiência por meio de um título caça-cliques. As informações se movem por endossos pessoais. O ambiente comum de debate virou um sem número de pequenas bolhas com pequenas interseções.

O resultado disso é mais desinformação, mais discurso de ódio, conteúdos extremistas, teorias da conspiração, além de um sistema que gera ansiedade e depressão, especialmente em adolescentes. As redes sociais são bem mais que isso, permitem participação e mobilização, acesso a cultura e a informação e muito mais. Mas seu lado de luz não deveria validar seu lado de sombra. Poderíamos garantir o lado iluminado sem precisar ficar com tantas partes obscuras.

Nesse momento, a Europa e o Reino Unido se debruçam sobre nova legislação para regular os mercados e os serviços digitais. Os textos trazem avanços, mas não são fortes o suficiente para reverter a base das distorções que hoje enxergamos. Houve um esforço de parte da sociedade civil de tentar emplacar o banimento da possibilidade de usar dados pessoais para criar perfis a serem oferecidos para publicidade. Mas as empresas conseguiram impedir isso.

É um desafio grande encontrar equilíbrio no esforço de proteger, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão individual, a liberdade de expressão coletiva (uma sociedade bem informada), privacidade, proteção de dados e equilibrar tudo isso com direitos de personalidade, de crianças e adolescentes e a criação de um ambiente saudável de comunicação. Mas o fato de ser difícil não deveria fazer recuar, e sim insistir, discutir mais, estudar mais as possíveis soluções e caminhos para sair do labirinto-cilada e desligar o experimento comportamental de longo prazo do qual seguimos fazendo parte.

 

 

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João Brant

Coordenador-geral do *desinformante. Pesquisador e consultor em políticas de comunicação e cultura. Sócio-administrador da Ponteio e diretor do Instituto Cultura e Democracia.

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