Práticas jornalísticas como a checagem de fatos e o jornalismo de dados foram conquistando cada vez mais espaço no ecossistema midiático na última década, com destaque a partir de 2020, quando a pandemia de Covid-19 exigiu ainda mais produção jornalística com base em dados confiáveis para diferenciar conteúdos enganosos de informação qualificada.
A disponibilidade pública e a qualidade de dados governamentais são elementos cruciais para o processo de apuração jornalística, particularmente em reportagens sobre assuntos para os quais o papel do Estado é central — como o combate à pandemia e outros temas de grande impacto na sociedade. Graças à Lei de Acesso à Informação (LAI), que neste maio de 2022 completa dez anos de vigência, jornalistas e cidadãos têm mais dados à sua disposição, algo fundamental para confrontar desinformação no debate público. Isso porque a lei de acesso prevê não só a possibilidade de fazer perguntas ao governo sobre seus atos, por meio de pedidos de informação, mas também obriga gestores públicos a publicarem ativamente dados sobre receitas e despesas, contratos e licitações, obras e programas.
Até a garantia desse direito foi um longo caminho. Após 21 anos sob regime militar, encerrado em 1985, o poder político e a burocracia estatal ainda carregavam vícios do período de repressão, quando sigilo de informações e o cerceamento da liberdade de expressão eram imperativos. Com a promulgação da Constituição de 1988, o direito de acesso à informação passa a estar incluído no rol de direitos fundamentais do cidadão. Na prática, porém, esse direito mal podia ser exercido, já que não havia regulamentação.
Foi só a partir do começo deste século 21 que esse estado de coisas começou a se modificar. Para mobilizar a criação de uma Lei de Aceso à Informação no Brasil, organizações da sociedade civil, entre elas entidades jornalísticas, realizaram o 1º Seminário Internacional sobre Direito de Acesso a Informações Públicas, em 2003, que resultou na formação do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, atualmente integrado por 24 organizações. No Conselho de Transparência do governo federal, a discussão começou em 2005, mas só em 2009 a Casa Civil da Presidência da República enviou à Câmara dos Deputados o PL 5228/2009, que deu início ao processo legislativo para a aprovação da Lei nº 12.527 – a LAI – em 18 de novembro de 2011.
Informação e democracia
A demora na tramitação de um projeto de lei tão importante para a sociedade democrática no Brasil reflete fraturas da própria democracia brasileira. O impulso final para a LAI foi a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Guerrilha do Araguaia, em 2010. A Corte entendeu que o governo brasileiro violava o direito a conhecer a verdade sobre a morte de dezenas de militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) em operações militares clandestinas durante a ditadura militar, como recupera a WikiLAI, plataforma da Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada no acesso à informação.
Engana-se quem pensa que tudo ficou resolvido com a publicação da LAI, em vigor desde 16 de maio de 2012. Especialmente nas Forças Armadas, a cultura do sigilo ainda passa longe de ser superada, como demonstrou o jornalista Luiz Fernando Toledo em sua dissertação de mestrado. Ele identificou que os órgãos militares tinham mais de 400 mil documentos desclassificados, ou seja, com prazo legal de sigilo expirado, de 2013 a 2020.
Ao pedir acesso à documentação com base na LAI, a Marinha sugeriu ao jornalista que solicitasse 15 documentos por pedido, pois havia necessidade de analisar individualmente cada arquivo para tarjar eventuais informações pessoais. Somente na Marinha, eram 69 mil arquivos, o que exigiria mais de 4 mil pedidos de informação. Multiplicados pelo prazo de 20 dias para cada resposta, seria necessário esperar algo em torno de 265 anos para acessar os documentos, pelas contas do pesquisador.
No que tange à transparência ativa, a má vontade das Forças Armadas não fica muito longe. Quando a Fiquem Sabendo denunciou ao Tribunal de Contas da União o descumprimento da LAI pela não divulgação dos beneficiários de pensões do governo federal, em 2017, obtendo decisão favorável em 2019, a primeira leva de dados publicada em julho de 2020 trazia apenas informações de pensionistas civis. Foi necessária uma nova denúncia ao TCU e cobranças constantes à CGU para que os valores pagos a dependentes de militares fossem divulgados.
Opacidade de dados e desinformação
Em meio à escalada de desinformação mundo afora, acompanhada por uma onda de autoritarismo nos diferentes países, o Brasil não passa ileso: em 2018, um ex-integrante das Forças Armadas é eleito presidente da República, levando consigo dezenas de militares da ativa e aposentados para o primeiro escalão do Executivo federal. Coincidência ou não, em 2019, o então vice-presidente Hamilton Mourão — também do time verde-oliva — tentou alterar as regras de classificação de documentos previstas na LAI por meio de decreto, o que só não se confirmou porque novamente houve pressão da sociedade civil.
Com a pandemia de Covid-19, decretada em março de 2020, houve outra tentativa de limitar o alcance da LAI, por meio de uma Medida Provisória que suspendia prazos para responder pedidos de informação. Mais uma vez, manifestações da sociedade civil e de parlamentares levaram o Supremo Tribunal Federal (STF) a suspender a medida. Não bastasse, as obrigações de transparência ativa foram seguidamente negligenciadas não só pelo governo federal, mas por Estados e municípios, como revelou o Índice de Transparência da Covid-19, da Open Knowledge Brasil. Com dados socioambientais não foi diferente, conforme monitoramento do projeto Achados e Pedidos. Para completar, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), liderado pelo general Augusto Heleno, bateu recorde de imposição de sigilos, segundo análise recente da Fiquem Sabendo na newsletter Don’t LAI to me.
A opacidade de dados públicos favorece a desinformação, pois impede a conferência de informações direto da fonte e alimenta vieses e teorias conspiratórias. Talvez não seja coincidência que os mesmos grupos acusados de promover desinformação sejam também acusados de tentar reduzir o alcance da LAI e de outros políticas e práticas de transparência. Ao mesmo tempo, o acompanhamento constante de organizações da sociedade civil e dos jornalistas, que atuam como curadores de dados públicos, fomentam o combate à desinformação. Quanto mais cidadãos se apropriarem desses dispositivos, mais condições terá a sociedade brasileira de manter a integridade de princípios democráticos como o acesso à informação e a liberdade de expressão.