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mar 3, 2022 | Destaques, Notícias

Reação do Telegram alivia, mas não resolve desinformação eleitoral no Brasil

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Ao bloquear três canais ligados a Allan do Santos, bolsonarista e foragido da Justiça, o Telegram jogou um bem-vindo balde de água fria no caldeirão fervente em que havia se metido no Brasil.

Ninguém que acompanhava de perto o desenrolar da história esperava que o Telegram, após quase um ano se negando até mesmo a estabelecer contato com autoridades brasileiras, capitulasse e cumprisse a ordem do ministro Alexandre de Moraes na sexta-feira (25/2). 

A expectativa criada durante esse período apontava para um desfecho dramático, construído ao longo dos últimos meses com crescente intensidade: o bloqueio completo de acesso ao aplicativo no Brasil por ordem da Justiça.

A capitulação do Telegram provoca diferentes sentimentos em grupos específicos. Entre os observadores do setor de tecnologia, membros do Judiciário e qualquer um preocupado com a escalada golpista registrada desde 2019 contra a democracia brasileira, a sensação é de alívio. 

O relacionamento entre o Telegram e a Justiça brasileira está longe da perfeição. Enquanto outras grandes plataformas digitais assinaram memorandos, têm contato direto com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e acatam ou no mínimo recebem decisões judiciais, a intermediação com o Telegram parece que se dará pelas ameaças nos tribunais. Até onde se sabe, a decisão proferida em agosto de 2021 para apagar conteúdo golpista da página de Jair Bolsonaro segue ignorada. No mais, é preciso entender se futuras ordens serão seguidas. É inegável, porém, que o episódio envolvendo os canais de Allan dos Santos será lembrado como uma vitória do TSE — e uma derrota do Telegram.

Para o bolsonarismo, a capitulação provocou um arrepio na espinha. Desde janeiro de 2021, com a ação mais enérgica da chamada Big Tech para banir o ex-presidente norte-americano Donald Trump de Twitter, Facebook, YouTube e afins após sua participação na tentativa de golpe de estado, o Telegram se apresentou como uma das melhores opções para acomodar quem confunde a moderação de conteúdo com censura.

Durante mais de um ano, o bolsonarismo, tão fiel em replicar e tropicalizar movimentos trumpistas, parecia ter encontrado um ninho confortável onde, na contramão da crescente moderação imposta pelas plataformas da Big Tech, poderia coordenar campanhas de desinformação e mentir em volume atacadista sem temer qualquer tipo de punição.

Até que a decisão do sábado (26/2) mostrou que o Telegram não está fora do alcance da Justiça. A reação foi imediata. Nas horas seguintes aos bloqueios dos canais de Santos, outros influenciadores bolsonaristas na plataforma passaram a criar canais reservas caso o mesmo acontecesse com eles.

Há, por fim, um terceiro sentimento compartilhado entre alguns dos observadores da questão: o de esperança. Esperança de que, com a capitulação, o debate da desinformação eleitoral no Brasil se reequilibre e volte a encarar o Telegram com o tamanho correspondente ao seu risco real no cenário digital.

Ninguém nega que o aplicativo – que limita sua moderação a questões de direitos autorais e pedofilia, mas não desinformação, conteúdo golpista e exposição indevida (reveng porn)  – traria dores de cabeça ao TSE.A questão é o tamanho que essa dor de cabeça atingiu na expectativa geral, tão grande que players com potencial para cefaleias ainda maiores foram esquecidos.

 

Sexo na praia e fakes cearenses

O Brasil tem uma história torta de decisões jurídicas que bloquearam plataformas digitais por completo no país. 

Em 2006, a modelo Daniela Cicarelli e seu então namorado foram filmados transando em uma praia espanhola. Na época, o site de vídeos mais popular do país era o brasileiro Videolog. Publicado na internet, o vídeo fez a procura nas plataformas explodir. Já acostumado com notificações judiciais, o VideoLog reagiu rápido para limpar sua base. Sem operação brasileira, o YouTube passou batido – os advogados da modelo não sabiam a quem recorrer. Com o vídeo no ar, a Justiça vislumbrou a alternativa. Em janeiro de 2007, o site foi bloqueado durante dois dias. A ordem foi enviada para os provedores de acesso, que bloquearam o acesso no backbone.

Além de ajudar na ascensão do YouTube e atrelar a história da modelo ao site, o vídeo desencadeou pela primeira vez o debate sobre a tensão entre provedores de serviço internacionais e a Justiça brasileira.

Não demoraria muito para um repeteco. Em setembro de 2008, a um mês das eleições municipais, uma candidata à prefeitura de Fortaleza acionou a Justiça para tirar do ar contas falsas que se passavam por ela no Twitter. Em um desdobramento que orgulharia Os Trapalhões, a Justiça não só deu razão à candidata, como ordenou o bloqueio do Twitter no Brasil. A decisão já era questionável pelo exagero, mas ficou ainda pior quando o bloqueio recaiu em um blog homônimo dedicado a cobrir a recém-chegada plataforma de microblog no Brasil.

Quase uma década depois, novo caso. Em 2016, um juiz de Lagarto, cidade no interior do Sergipe, mandou bloquear o WhatsApp após o Facebook se negar a quebrar o sigilo de conversas no app entre dois traficantes investigados. 

A cada ignorada que o TSE, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Ministério Público Federal (MPF) tomavam do Telegram, a discussão escalonava e, com ela, a busca por uma solução definitiva. Cedo ou tarde, todos os caminhos levavam ao bloqueio. Ao acompanhá-las, não conseguia pensar no assunto sem ter as três histórias acima como parâmetro. Muita coisa mudou desde 2008, mas o histórico brasileiro em sanções do tipo é de arrepiar a espinha de qualquer um.

Com o banimento de Trump, não demorou muito para que o bolsonarismo, em busca de soluções, encontrasse o Telegram. A partir de janeiro de 2021, o Telegram sai de um nicho de entusiastas de privacidade para tornar-se o ponto focal da discussão da desinformação eleitoral no Brasil. É fácil visualizar o movimento com dados.

Desde o primeiro mês da presidência de Bolsonaro, conteúdos em português sobre Telegram no Facebook acumularam cerca de 1,5 milhão de posts. Até o fim de 2020, o número de interações semanais geradas por esses posts (ou seja, cada curtida, comentário ou compartilhamento) ficava na casa dos 100 mil— pouco mais, pouco menos. 

Gráfico da ferramenta Crowdtangle mostra evolução do número de posts em português citando “Telegram” no Facebook – a partir de janeiro de 2021, número cresce e atinge seu ápice em junho e julho. 

 

A partir de janeiro de 2021, o número começa a aumentar. Na última semana do mês, aproximou-se dos 700 mil, segundo a plataforma Crowdtangle. Dali em diante, o número passou a crescer consistentemente até atingir seu ápice na primeira semana de junho, com mais de 1,7 milhão de interações.

Quem começa a migração, sem surpresa, é Jair Bolsonaro.

Em 12 de janeiro de 2021, dias depois da tentativa de golpe nos EUA e o banimento de Trump, Bolsonaro lançou seu canal no Telegram. Seus asseclas o seguiram nas semanas seguintes. Nos primeiros meses, era só um laboratório. Em abril o assunto se tornou muito relevante a Bolsonaro. 

O número de posts citando Telegram no seu Facebook triplicou em relação ao mês anterior e atingiu um patamar que se manteve no restante de 2021. Coincidência ou não, é no começo de maio que Bolsonaro, pela primeira vez, começa a ventilar publicamente a ideia de um decreto para mudar o Marco Civil da Internet, numa tentativa de proibir redes sociais de moderarem conteúdo. Era um balão de ensaio para a medida provisória (MP) editada em setembro. Com o fracasso tanto da MP quanto das manifestações golpistas que acabaram com o presidente pedindo desculpas ao STF, as menções ao Telegram desabaram. 

Número de menções mensais ao termo “Telegram” nos posts do presidente Jair Bolsonaro no Facebook. A popularidade coincide com discursos golpistas de Bolsonaro contra o sistema eleitoral.

 

O assunto não morreu; ficou incubado. Na virada do ano, ele voltou à tona simultaneamente ao retorno dos ataques ao sistema eleitoral, ao TSE e aos seus presidentes no período, os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. Para Bolsonaro, o Telegram é peça fundamental na estratégia de desinformação que fundamentará (tal qual já o fez em 2018) sua campanha eleitoral de reeleição agora, em 2022.

Conforme a cobertura da imprensa aprofundava e dava detalhes sobre a crescente tensão entre Justiça e Telegram, o debate público colocou o app sob holofotes e o transformou numa espécie de panaceia, solução mágica na luta contra a desinformação. 

 

O debate técnico e jurídico de um eventual bloqueio

Fora as posturas vitriólicas e ocasionalmente delirantes que caracterizam as redes sociais, o debate do bloqueio se concentra em duas frentes: a técnica e a jurídica. 

Pelo lado técnico, é preciso entender como o bloqueio se daria e sua efetividade. As perguntas são muitas e a maioria ainda não tem resposta exata: é preciso derrubar o app todo ou é possível mirar canais específicos? Como driblar as ferramentas próprias criadas pelo Telegram para impedir bloqueios? Usar um proxy ajudaria? E, principalmente, o quão efetivo seria um bloqueio do tipo?

Pelo lado legal, juristas debatem qual a fundamentação teórica do bloqueio – nenhum magistrado ou ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) ordena sem base na legislação. Duas correntes se contrapõem: a que argumenta que é preciso ter uma nova lei aprovada que preveja o bloqueio de apps sem operação local e os que alegam que o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados e até o Código de Defesa do Consumidor podem ser usados como base.

A advogada Flávia Lafavre, que vem pensando nesta interseção entre Justiça e tecnologia anos antes de muitos de nós nos interessarmos pelo tema, escreveu um post interessante explorando cenários. No fim, sua fundamentação teórica usa artigos dos Códigos de Processo Civil e Penal.

Todos concordamos que nenhuma empresa ou serviço pode decidir se segue ou não as leis de um país onde opera. Esgotadas todas as alternativas jurídicas possíveis, o bloqueio, com toda sua radicalidade, vira a única alternativa, desesperada, definitiva e que desencadeia tantos outros questionamentos, já conhecidos dos bloqueios anteriores.

A capitulação do Telegram suspende, pelo menos temporariamente, os debates técnicos, jurídicos e até morais.

Com esse refresco, é preciso cuidado para não cair na armadilha de acreditar que a desinformação eleitoral perdeu seu principal pilar. Enquanto o Telegram ocupava no debate público um espaço maior do que o efetivo perigo que representa à desinformação eleitoral, fatores potencialmente ainda mais nocivos foram deixados de lado.

Ter uma operação local, com executivos de postura ereta repetindo com boa oratória textos lapidados pelo departamento de relações públicas, não significa, necessariamente, interesse e compromisso reais com o combate à desinformação. 

É o caso da Big Tech no Brasil.

Em dezembro de 2021, a menos de um ano das eleições, o WhatsApp apresentou a representantes de setores estratégicos no Brasil a possibilidade de derrubar os limites de circulação de mensagens impostos pelo aplicativo em resposta aos abusos verificados em 2018. Ao oferecer opções que não obedecem ao limite de 256 membros por grupo, o WhatsApp planeja se tornar “mais parecido com o Discord e o Telegram”, diz a reportagem no jornal O Globo assinada pelo repórter Guilherme Caetano.

A possibilidade de o WhatsApp, presente em 99% dos celulares no Brasil, segundo pesquisa da Opinion Box, afrouxar as regras impostas para evitar o inferno comunicacional em 2018 a menos de um ano das eleições majoritárias é um importante sinal de alerta.

No livro “A máquina do ódio”, a jornalista Patrícia Campos Mello explica como o WhatsApp, após as eleições de 2018, adotou uma postura de pouca transparência e ajuda para esclarecer os pontos que levaram aos disparos em massa ilegais na campanha brasileira. O app promoveu mudanças técnicas na tentativa de conter a viralização de mentiras e boatos e resistiu em compartilhar informações que ajudassem a elucidar o caso. Só um ano depois das eleições um executivo do app assumiu que, sim, o WhatsApp sabia que tinha sido usado para disparos em massa, cena que Patrícia descreve entre as páginas 65 e 72 do seu livro.

 

Sem fiscalização rígida, mas com Doodle

Ao analisarmos os memorandos assinados pelas plataformas com o TSE, o que chama atenção, mais do que o proposto, é o que falta. 

O Google cogita, tentando demonstrar compromisso, trazer ao Brasil uma fiscalização mais rígida do discurso eleitoral já vigente nos EUA e na Alemanha. É inacreditável a empresa por trás do buscador e do site de vídeos mais populares do Brasil, após incontáveis provas do uso dos seus serviços para campanhas de desinformação política nos últimos quatro anos, já não tê-la implementado.

Em troca, o Brasil ganhará um Doodle comemorativo — aquela versão temática do logo do Google que aparece vez ou outra em datas especiais. Soa como piada, mas é real.

A falha de prometer ou replicar de forma limitada o que já foi usado lá fora não é exclusividade do Google. Em seu memorando, o TikTok se compromete a combater discursos que alegam fraudes na votação por correios, sistema disponível nos EUA, mas não no Brasil.

Há razões para preocupação até mesmo quando as regras são cristalinas. Facebook, YouTube, Twitter e Instagram seguem ignorando suas próprias regras para deixar no ar e impune conteúdos que mentem sobre a pandemia, a vacinação infantil e o processo democrático brasileiro. 

A Agência Lupa encontrou 122 tweets de contas de grande projeção com mentiras que infringem as regras do Twitter e, ainda assim, seguem no ar sem nenhum alerta. Reportagem do jornal O Globo mostrou como figuras próximas a Jair Bolsonaro, como seu filho Flávio Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia, não sofreram as sanções previstas – notoriamente o bloqueio temporário do canal – quando tiveram vídeos excluídos por infringir as regras da plataforma. 

Não é difícil encontrar no Facebook lives transmitidas por membros do Congresso Nacional, como a deputada Bia Kicis, que mentem sobre a vacinação infantil e/ou o ineficaz tratamento precoce da covid-19. Também no Facebook, o sistema eleitoral brasileiro vem sendo atacado com mentiras por uma campanha que rende, diariamente, cerca de 247 mil interações, segundo estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP-FGV) no período de novembro de 2020 a janeiro de 2022. Também no YouTube, é facílimo encontrar vídeos, alguns monetizados, que pedem expressamente o fechamento do Congresso e do STF.

 

Em vídeo de 2019, Políbio Braga pede, expressamente, o fechamento do Congresso Nacional e do STF. Mesmo contra a Constituição, vídeo segue no ar no YouTube e já atraiu 145 mil visualizações.

 

Todos esses são problemas reais e urgentes que continuam sem solução.

Há fartas evidências de que, mesmo com os memorandos cheios de boas intenções assinados com o TSE, as responsáveis pelas principais plataformas digitais onde ocorrem os debates políticos do Brasil fizeram o trabalho de combate à desinformação e conteúdo golpista pela metade.

A capitulação do Telegram é, sim, uma boa notícia. 

Mas, se o TSE pretende sanear o ambiente digital para conter redes de desinformação e disparos de mensagens em massa com objetivos antidemocráticos, ideológicos ou financeiros, é preciso que o ruído criado pelos departamentos de relações públicas não mascare a realidade.

 

Esta análise é uma colaboração de Guilherme Felitti, fundador do estúdio de data analytics Novelo Data e apresentador do podcast Tecnocracia, sobre os efeitos nem sempre positivos da tecnologia em nossas vidas. Cobriu o mercado de tecnologia no Brasil por 13 anos.
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