A escalada de tensão no leste europeu culminou no ataque russo ao território ucraniano na madrugada desta quinta-feira (24). O bombardeio à fronteira e à capital da Ucrânia veio após dias tensos marcados por ameaças e desinformação. O Atlantic Council’s Digital Forensic Research Lab, por exemplo, mapeou dez informações falsas que ajudaram a sustentar a invasão. Entre elas, narrativas que indicavam que a Ucrânia se preparava para atacar ou que já havia bombardeado áreas.
Apesar de ser possível evidenciar a desinformação nesse caso atual, o uso de informações enganosas para manipular a opinião pública ou para justificar conflitos internacionais não é novo, tampouco é um recurso exclusivo do Kremlin. Para compreender essa interseção da Desinformação e Guerra, o *desinformante conversou – ainda antes do bombardeio – com o professor e pesquisador Bernardo Wahl, docente de Segurança Internacional na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre em relações internacionais. Confira a entrevista completa:
Liz Nóbrega: A gente fala muito de desinformação, principalmente depois das eleições norte-americanas de 2016, mas, quando a gente pensa nesse fenômeno como informações falsas que são disseminadas de uma forma deliberada para causar dano, podemos pensar como um fenômeno novo?
Bernardo Wahl: Esse fenômeno não é necessariamente novo, se a gente olhar ao longo da história podemos encontrar a origem dele na antiga União Soviética. Depende do que a gente entende como novo, depende do marco histórico do tempo histórico que a gente considera, mas esse termo foi cunhado pelo Joseph Stalin e essa palavra desinformação derivava do título de um departamento de propaganda da KGB, que era o órgão de segurança do estado da extinta União Soviética. Essa palavra desinformação tem como origem a palavra russa equivalente, então a origem está no século 20 na União Soviética na época do Joseph Stalin, especificamente na KGB está a origem histórica. E se a gente trouxer para os tempos atuais, uma questão interessante é que o presidente Vladimir Putin é um homem da KGB. Ele foi um oficial da KGB e ele conhece como ninguém as táticas da antiga KGB e ele retomou essas táticas e as impulsionou.
Liz Nóbrega: Como podemos ver essa estratégia utilizada politicamente?
Bernardo Wahl: Essa ferramenta se originou na antiga União Soviética, mas ela é usada por todo o espectro político. Só para usar o caso da Ucrânia como exemplo novamente, se você se lembra dos últimos dias e das últimas semanas, a gente pode observar a mídia ocidental reproduzindo muito a visão do governo norte-americano, estava sendo transmitida a ideia de que um ataque russo à Ucrânia seria iminente, inclusive a data e o horário dessa invasão estavam sendo divulgados. Essa foi uma espécie de estratégia do governo de Joe Biden, da diplomacia do Megafone, revelando informações de inteligência dos Estados Unidos para constranger Vladimir Putin numa espécie de guerra híbrida, em uma grande operação psicológica que pode ter o seu propósito de desinformar. Ou seja, você fez a pergunta do uso político, eu te dei um exemplo de um caso concreto, eu havia falado antes da origem histórica da União Soviética e do Vladimir Putin retomando e impulsionando, mas também agora mostrando que o mundo ocidental, particularmente os Estados Unidos, eles também usam esse tipo de estratégia, esse tipo de ferramenta na sua política externa.
Liz Nóbrega: No momento de guerra, de tensões políticas, é muito importante para um governo influenciar a opinião pública. Qual a importância dessa influência e como a desinformação pode ser usada para a construção dessa opinião pública?
Bernardo Wahl: Existe um conceito importante quando a gente fala de guerra, que é o centro de gravidade. Tem um pensador do fenômeno da guerra que é o Carl von Clausewitz, do século XIX, que viveu no reino da Prússia, e ele escreveu um livro clássico chamado ‘Da Guerra’. O Clausewitz falava do centro de gravidade como sendo o centro de todo o poder e movimento. Na época dele, o centro de gravidade costumava ser a capital do inimigo, podia ser o exército inimigo, podia ser o aliado, podia ser o líder inimigo, entre outros. Porém, atualmente, o centro de gravidade dos conflitos tem sido considerado a opinião pública. Há algum tempo atrás, quando a gente passou pela Guerra ao Terror e as campanhas contra insurgência dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque, se enfatizou muito a questão de ganhar o apoio da população. Nas guerras de libertação nacional e nas campanhas de guerrilha sempre se tocou nessa tecla de ganhar o apoio da população, ou seja, o centro de gravidade das guerras atuais é a opinião pública e a questão da informação, ou da desinformação. O campo de batalha está na cabeça das pessoas e aí a gente pode acrescentar as redes sociais e a questão psicológica. A guerra está acontecendo na cabeça das pessoas e as informações, ou desinformações, funcionam como se fossem bombas semióticas. Não é necessário hoje disparar uma bomba de verdade, que vai explodir, mas uma bomba informacional tem um objetivo muitas vezes de paralisar a pessoa. Porque estamos no meio de um monte de notícias e nunca sabemos muito bem o que está acontecendo e muitas vezes a ideia é deixar as pessoas paralisadas, sem reação. Isso na guerra é muito importante, tirar a reação do inimigo para se ganhar a iniciativa. Então não é necessário disparar um tiro real quando se pode disparar uma informação que pode paralisar o inimigo.
Liz Nóbrega: Além dos exemplos que o senhor já comentou, qual outro caso de desinformação nesses conflitos internacionais, tanto conflitos diplomáticos como também conflitos bélicos, podemos ter em vista para compreender o fenômeno?
Bernardo Wahl: Tem um clássico oriental do pensamento da guerra, que é o Sun Tzu e o seu livro A Arte da Guerra. Sun Tzu diz que as estratégias mais bem sucedidas enfatizam a psicologia e o engano. Como ele diz, conheça o inimigo e conheça a si mesmo e em 100 batalhas, você nunca estará em perigo. Isso mostra que a informação representa uma chave para o sucesso na guerra. E o Sun Tzu é um otimista da atividade de inteligência, ele diz que o resultado da guerra pode ser conhecido de antemão se o líder faz uma estimativa completa da situação. O que eu quero mostrar com isso é que desde a antiguidade chinesa já se atribuía um valor inestimável à informação.
Embora a desinformação apareça ao longo da história, esse fenômeno no século XXI foi muito potencializado pela tecnologia. Para pensar um caso interessante anterior a essa revolução da informação, tomamos a Guerra Fria, a disputa bipolar entre Estados Unidos e União Soviética no século XX, que é bastante caracterizada por uma guerra de inteligência e essa inteligência contém informação e desinformação. A desinformação para despistar o seu inimigo, para mandar ele para um caminho errado, para ele não saber o que você está fazendo. E a inteligência Soviética, e consequentemente a inteligência russa hoje, ela tem uma abordagem diferente da Inteligência ocidental, ela se utiliza de algo chamado medidas ativas. Dentro dessas medidas ativas existe o famoso kompromat, onde uma pessoa pode ser chantageada e usada para agir em favor, no caso aqui, da Inteligência russa ou Soviética.
Liz Nóbrega: No caso específico do conflito atual, como o Kremilin atua na disseminação de narrativas falsas?
Bernardo Wahl: Quem tem recursos para preparar a desinformação são as agências governamentais, as agências de inteligência e esse método vem da KGB desde a época da guerra fria e eles fazem de um jeito que a gente sempre fica com a pulga atrás da orelha pensando ‘será que é verdade’. Eu vou te dar um exemplo. Na época da guerra fria um acadêmico que escreveu um artigo em um jornal da Índia atribuindo a criação da doença AIDS aos Estados Unidos e circulou essa teoria de conspiração e muitas pessoas até hoje acreditam nisso e foi uma desinformação plantada pela KGB. É algo sofisticado porque assim a desinformação não vai aparecer em um vácuo, ela vai aparecer no ambiente onde 80% das informações são verdadeiras e 20% são falsas, então a gente acaba dando credibilidade.
E essa questão de chamar o que a Rússia tá fazendo de invasão ou não tem várias disputas narrativas. Veja que interessante a semântica russa em relação à Ucrânia: foi vendida pelo Ocidente a ideia de invasão e a Rússia está usando uma linguagem semântica diferente, ela não fala de invasão, ela fala de reconhecer as auto proclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk e a partir daí fazer acordo de cooperação entre eles, um acordo militar que possibilite o envio de tropas de paz. O que para a Rússia não caracteriza uma invasão para o Ocidente é uma violação de fronteiras internacionais.
Em 2003 os Estados Unidos, depois dos atentados terroristas da Al-Qaeda, invadiram o Iraque de maneira unilateral, sem aprovação das Nações Unidas. Naquela época ninguém impôs sanções aos Estados Unidos, uma democracia, como os Estados Unidos, também passou por cima das Nações Unidas.
Liz Nóbrega: Professor Wahl, esse caso da invasão do Iraque pelos Estados Unidos também foi polêmico pelo uso de informações falsas, não é?
Bernardo Wahl: Esse exemplo, Liz, é perfeito. Os Estados Unidos também criaram informações falsas que eles apresentaram no Conselho de Segurança da ONU, estava lá Colin Powell, um general que era secretário de estado norte-americano, com o então chefe da CIA, eles criaram essas informações que depois se mostraram falsas. Eu até escrevi um post lembrando desse caso da invasão no Iraque fazendo esse paralelo da Rússia hoje. Podemos fazer um paralelo da desinformação russa no contexto da Ucrânia e a invasão norte-americana ao Iraque também usando informações falsas.
Liz Nóbrega: Por fim, é possível a gente pensar em conflitos e guerras sem pensar em desinformação?
Bernardo Wahl: Eu acho que a desinformação faz parte do jogo e, como disse o Clausewitz, a guerra é o reino da incerteza, a gente nunca terá certeza do que está acontecendo. Então sempre pode ter uma informação plantada, pode ter uma desinformação colocada, eu acho que não vai existir uma guerra sem isso, principalmente nos dias de hoje que a gente vive cada vez mais uma situação de guerra híbrida, que representa basicamente a dissolução das fronteiras entre política, guerra e paz. Sobre guerra híbrida, o livro indicado é do professor Piero de Camargo Leirner, que se chama ‘O Brasil no espectro de uma guerra híbrida’. O professor fala que essa guerra híbrida tem muito sobre se infiltrar no aparelho cognitivo do inimigo, tem a ver com operação psicológica, tem a ver com essa questão do processo cognitivo como se fosse a primeira etapa de uma guerra, ele vem antes das operações militares. E isso se torna mais frequente nesse ambiente onde a guerra híbrida é cada vez mais presente e usada por todos os atores internacionais.