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Thais Monteiro

jan 11, 2022 | Destaques, Notícias

Desafio é criar linguagem para falar com quem é afetado e nem sabe

Thais Monteiro
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Tecnologia e inovação podem combinar com simplicidade e foco em problemas sociais. O Olabi é uma organização baseada no Rio de Janeiro, que existe desde 2014, e tem como foco democratizar as tecnologias como forma de transformar a sociedade. “Nosso trabalho está muito num lugar de trazer as pessoas para o centro, não só das afetações que o digital traz, mas também das soluções e de como a gente cria metodologia”, conta a codiretora executiva Silvana (Sil) Bahia.

Nesta conversa, ela avalia como a desinformação atravessa o trabalho da organização e convoca um discurso mais simples e bem traduzido para poder enfrentar o problema. “A gente fala muito dentro do nosso meio: ‘tecnologia, inovação, direitos sociais, justiça racial’. Beleza, mas como a gente fala disso usando outras palavras que as pessoas conhecem também?”, provoca Sil. E reforça que neste momento o enfrentamento da questão racial é a prioridade do Olabi. “Inovação para mim é ouvir quem nunca pôde ser ouvido, especialmente mulheres pretas e pobres”.

No Olabi, Sil coordena o PretaLab, que é uma iniciativa da organização de estímulo às mulheres negras nas tecnologias e inovação. Mestre em cultura e territorialidades pela UFF, pesquisadora associada do grupo de arte e Inteligência Artificial da USP e do grupo de pesquisa em Políticas e Economia da Informação e Comunicação da UFRJ, em 2021 Sil Bahia recebeu o prêmio Protagonista Brasil, País Digital concedido pelo Movimento Brasil, País Digital. A entrevista faz parte da série #Panorama2022.

João Brant: Em que medida o tema da desinformação atravessa o trabalho do Olabi?

Sil Bahia: A desinformação não é uma causa específica do nosso trabalho, mas ela atravessa o nosso trabalho, porque a nossa missão é estimular que a sociedade, de alguma forma, lide melhor com essas novas tecnologias, e é aí que isso se cruza. A gente tem como questão prioritária a questão racial, trabalhar no enfrentamento a essa desigualdade. Mas a gente tem outros projetos que dialogam com essa questão da desinformação, como o Aprenda com uma Avó, que é um projeto que a gente criou em 2018.

Não era um projeto que tinha essa pretensão de dialogar sobre desinformação – ele começou offline em Madureira, depois a gente fez uma segunda edição na Maré [complexo de favelas no Rio de Janeiro]. É um projeto que mistura técnicas low tech e high tech para pessoas acima de 60 anos, para estimular que essas pessoas tenham uma relação mais qualificada com o digital.

O Aprenda com uma Avó se tornou uma plataforma em 2019, em 2020 foi um ano que a gente rodou muito esse projeto, por conta da pandemia, por conta também de as pessoas mais velhas serem o principal grupo de risco da Covid. Em 2021 virou um curso de letramento digital. Por quê? Por que pesquisas mostram que uma grande parte das fake news que circulam hoje nos aplicativos de mensagens são reproduzidas por pessoas acima de 60 anos. Esse dado chamou muito a nossa atenção.

A gente fala de legado, mas a gente tem de falar com a galera que está aqui agora e que recebe essas notícias no WhatsApp o tempo inteiro. Em 2021 bombou o Aprenda com uma Avó, letramento digital, porque é como a gente checa uma notícia. As pessoas não sabem fazer isso. Ou seja, desinformação não é o nosso mote principal, mas está ali atravessando todas as nossas ações e esse pensamento de estimular uma relação mais qualificada.

João Brant: As pessoas idosas que estão dialogando com vocês se reconhecem nesse lugar, elas percebem uma ausência? Como vocês sentem a percepção delas sobre esse tema?

Sil Bahia: Duas coisas acontecem quando as pessoas mais idosas têm acesso a esse conhecimento. Primeiro, elas percebem o quanto são leigas nisso tudo; segundo, elas se empoderam. Elas conseguem se sentir incluídas também dentro disso, de uma forma mais autônoma. “Putz, agora entendi, não posso compartilhar esse link aqui sem checar se isso é real”. Só que ninguém disse isso antes a elas. Por isso que acho que tem um trabalho muito pedagógico.

E aí não é só com quem tem acima de 60 anos, não. Tudo bem que a gente está falando hoje de uma geração que é nativa digital, que entende o touch screen de uma forma muito fácil. Mas o fato de você ter internet, de ter um computador, de você acessar determinadas coisas não garante que a sua relação com esse universo seja 100% plena, 100% segura ou qualificada.

Eu acho que esse é um desafio inclusive para pensar toda essa relação com o digital e com desinformação principalmente: falta linguagem para falar com as pessoas. Esse é um desafio para todo mundo que está olhando para esse campo e está desenvolvendo trabalhos nessa área. Criar linguagem para falar com quem não é especialista, com quem não sabe, com quem também está sendo afetado.

O nosso trabalho está muito num lugar de trazer as pessoas para o centro, não só das afetações que o digital traz, mas também das soluções e de como a gente cria metodologia.

João Brant: Você citou os idosos como um grupo especialmente afetado, até pela maior propensão a compartilhar a fake news. Mas eu queria te ouvir do seu lugar, que é um lugar privilegiado de olhar sobre tecnologia e sociedade, se a gente puder dizer de forma ampla, onde você localiza os impactos mais graves da desinformação hoje? O elemento desinformação está gerando problemas para quem e de que forma?

Sil Bahia: Aí preciso recorrer às questões estruturais do Brasil. As desigualdades que formam o nosso país aparecem tanto na tecnologia quanto na inovação. Aparecem desde quando você não vê pessoas negras, pobres, produzindo tecnologia e criando inovação por uma questão principalmente de acesso e estrutura, mas também de repertório. As pessoas nem sabem que elas poderiam fazer isso também.

Por outro lado, esse conhecimento não chega. A grande maioria da população do Brasil acha que a internet são as redes sociais. Quando a gente olha para quem está respondendo isso, a gente encontra ali gênero, classe social e cor. 81% do discurso de ódio na internet é direcionado a mulheres negras, isso também é uma pesquisa relevante.

Por que isso acontece? Por que são as mulheres negras as mais afetadas por discurso de ódio na internet? Porque é uma reprodução de uma desigualdade estrutural. São as pessoas que estão mais vulneráveis ao desemprego, à violência, à falta de estrutura para poder estudar, isso se reflete também quando a gente vai pensar na desinformação.

A gente tem que fazer política no salão, no boteco da favela, no salão de cabelereiro, a gente tem que descentralizar também essas conversas, porque só o Instagram, o LinkedIn, o Youtube, não dão conta. É óbvio que é uma camada importante, mas fico pensando como que a gente inventa outras camadas para criar diálogo. Por isso que eu falo tanto de linguagem, porque eu acho que a gente peca aí, tem uma quebra de linguagem.

João Brant: Em que medida a desinformação, olhada ‘no atacado’ além do ‘varejo’ das fake news, é um assunto relevante?

Sil Bahia: Discutir desinformação não é só importante, é urgente. A gente vive uma enxurrada de informação o tempo inteiro, consumindo informação de uma forma ou de outra. Falar de desinformação tem a ver com uma educação para lidar com essa enxurrada de informação. Eu me pergunto muitas vezes se o nome deveria ser desinformação, ou se a gente precisa criar inclusive outros códigos para falar disso. Porque fake news é uma mentira, é uma fofoca, é algo que existe desde que o mundo é mundo, então como que a gente também populariza… eu sei que não dá para ser tão radical às vezes nesse lugar, mas tem uma missão. A gente sabe o que é fake news, não é uma novidade, isso é uma coisa que já existe há muito tempo. Qual é a diferença quando isso vai para o digital? É o impacto que isso tem, que é muito maior. Uma coisa é ‘contei uma fofoca aqui para a minha vizinha’, outra coisa é isso estar nos grupos, nas listas de transmissão do WhatsApp, então a gente está falando de impacto também.

Eu acho que discutir desinformação é urgente, principalmente para esse ano que a gente está vindo, mas talvez a gente precise usar outras palavras para poder conectar com quem a gente quer conectar sobre esses assuntos. Mas a gente precisa ‘levar a palavra’. Tem um trabalho muito forte de base feito e um trabalho que é de significação das coisas. A gente fala muito dentro do nosso meio: “tecnologia, inovação, direitos sociais, justiça racial”. Beleza, mas como a gente fala disso usando outras palavras que as pessoas conhecem também? É uma coisa que a gente precisa olhar mais, porque senão a gente fica só na nossa bolha.

Para isso a gente vai ter que falar de outro jeito, usar também conhecimentos que são mais populares. Às vezes um arduíno [plataforma de prototipagem eletrônica] não me interessa. Mas, espera aí, e se a gente usar isso aqui, por exemplo, para regar automaticamente uma horta? Aí começa a fazer sentido. Acho que tem uma missão aí de como a gente significa as coisas, como a gente significa o que é a desinformação.

Como a gente cria outros códigos para falar de um problema que é sério e que afeta todo mundo? Não ter creche para as crianças afeta totalmente a vida das mulheres, é a economia do cuidado. Talvez eu não precise usar esse termo de cara com as pessoas, a economia do cuidado, mas você está sempre cuidando de alguém. Você está cuidando do seu filho, do seu pai, da sua mãe, do seu irmão. Tem essa urgência de trazer outros códigos, para a gente poder falar disso com outras pessoas. Se a gente não dialogar bem com outros públicos, a gente pode ter um janeiro de 2023 bem aquém do que a gente gostaria que fosse.

João Brant: Eu queria te ouvir um pouco mais sobre saídas, a partir da leitura de como isso afeta a população negra e mulheres mais pobres. Vocês estão falando de ações ao alcance de vocês, por exemplo, do Aprenda com uma Avó, mas eu queria te ouvir sobre saídas possíveis, inclusive pensando se inovação é um caminho para enfrentamento à desinformação.

Sil Bahia: A saída possível é abrir espaço para pessoas que são dessa camada da população – pessoas pobres, pessoas negras – também ocuparem espaços de decisão. E quando eu falo isso não é para o CEO branco deixar de ser CEO, né? É para ele abrir um espaço ali naquela diretoria também, para que outras pessoas possam chegar. Pessoas pretas principalmente, mulheres pobres principalmente, porque as perguntas precisam vir de outros lugares. E isso só vai acontecer quando essas pessoas também estiverem nesses espaços onde são ouvidas.

Não é dar voz, porque as pessoas já têm voz, é ouvir e trazer pessoas para esses espaços de decisão. O nosso trabalho, por exemplo, no PretaLab tem muito essa missão de criar um diálogo e estimular que mulheres negras ocupem espaços de poder. E isso para mim já é inovação, porque se a gente for parar para pensar: 131 anos após a abolição, a USP, em 120 anos. formou 10 mulheres negras na área de tecnologia. Ter uma mulher negra na Poli da USP já é muito inovador. Não só para ela, mas principalmente para a universidade. Tomo a USP como um exemplo aqui, mas poderia ser qualquer outra universidade.

Então inovação para mim é fazer com que outras perguntas cheguem. Outras pessoas precisam ter conhecimento, ter acesso a isso, para poder fazer outras perguntas, porque eu acho que a gente está carente de resposta, mas porque a gente também não sabe fazer pergunta. Inovação para mim é ouvir quem nunca pode falar, quem nunca pôde ser ouvido.

João Brant: Olhando um pouco para 2022, quais as perspectivas? Quais desafios vocês enxergam para o ano, que vai ser marcado pelo processo eleitoral?

Sil Bahia: É muito desafiador fazer previsões para 2022, porque a gente sabe que vai ser um ano difícil. As ações do Olabi serão focadas na criação de diálogo com as pessoas que apoiam esse governo, mas são as mais afetadas por ausência de política pública – por exemplo, pelos cortes na saúde. A gente está muito preocupado e focado em janeiro de 2023. A gente vai ter que guardar fôlego, com um cenário x ou y, para poder lidar com essa que vai ser a nossa realidade. Então não vai dar para gastar toda a energia agora em 2022, vai ter que se cuidar muito e ser muito estratégico também. Vai ter que conseguir se articular, que eu acho que não é uma coisa que a gente tem feito muito bem nos últimos anos. Acho até que é uma característica desse momento do mundo, que está muito individualista, muito em bolhas. Então a gente não consegue dialogar e é por isso também que o tecido social se esgarça, porque eu não falo com quem é muito diferente de mim.

O principal desafio do Olabi em 2022 é falar com quem é muito diferente da gente, com quem não está necessariamente apoiando as nossas causas, mas que a gente sabe que são pessoas que estão sofrendo o impacto das mudanças. São mudanças que acabam prejudicando principalmente pessoas pretas, pessoas de classes sociais não altas, mulheres, que são a grande maioria também dessa população.

 

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