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Ricardo Stuckert / PR

Entenda a Agenda Brasil Digital: pacote de medidas com foco em crianças, concorrência e infraestrutura digital

Ricardo Stuckert / PR
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No último dia 17 de setembro, o governo federal apresentou a Agenda Brasil Digital, um pacote de medidas que marca um novo capítulo na regulação do setor digital no país. Anunciada em cerimônia no Palácio do Planalto, a iniciativa reúne legislações e propostas voltadas a três eixos centrais: plataformas digitais, proteção de dados e infraestrutura tecnológica, áreas estratégicas para o futuro da economia e da democracia brasileiras.

Na ocasião, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 15.211/2025, que institui o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital), estabelecendo regras inéditas de proteção a menores no ambiente online. Também foi editada a Medida Provisória nº 1.317/2025, que transforma a Autoridade Nacional de Proteção de Dados em Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), ampliando sua autonomia institucional.

Além disso, Lula assinou a criação do Regime Especial de Tributação para Serviços de Data Center (Redata), parte da Política Nacional de Data Centers. Por fim, o governo encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei de Concorrência de Mercados Digitais (PL 4675/25), que moderniza regras de competição e expande a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Ao longo desta matéria, destrinchamos ponto a ponto cada uma dessas medidas e apresentamos as repercussões levantadas por especialistas, oferecendo um panorama sobre os impactos regulatórios, econômicos e políticos da Agenda Brasil Digital.

1) ECA Digital

A Lei nº 15.211/2025, que institui o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital), é um marco legal para a proteção de menores em ambientes online. A norma estabelece diretrizes inéditas para prevenção de abusos digitais, responsabilização das plataformas e garantia de segurança e transparência em redes sociais, jogos e aplicativos.

Entre os principais pontos, estão a proibição de publicidade digital voltada a crianças, a obrigatoriedade de ferramentas de controle parental, protocolos para remoção de material ilegal e a criação de canais de denúncia acessíveis.

Sanção do Projeto de Lei n° 2628/2022, também conhecido como ECA Digital. Foto: Ricardo Stuckert / PR

Para o jurista Rafael Zanatta, diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, o ECA Digital é “um megaestatuto sobre direitos de crianças”, comparável em importância ao próprio ECA de 1990.

Ele destaca que a lei não depende apenas da comprovação de idade, mas da probabilidade de que um serviço seja usado por crianças, impondo deveres imediatos às plataformas. “O objetivo central é garantir proteção integral e vedar a chamada ‘datificação da infância’, proibindo a exploração econômica de dados de crianças”, afirmou.

Atribuições de responsabilidades

A operacionalização do ECA Digital foi detalhada pelo Decreto nº 12.622/2025, que atribui à recém-transformada Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) a coordenação da política de proteção de crianças e adolescentes online.

A norma também distribui responsabilidades entre a Anatel, que ficará a cargo da articulação com empresas de telecomunicações, e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que terá papel no bloqueio de domínios “.br” usados para disseminar abusos.

Redução de vacância e atuação do MPF

Outra mudança relevante promovida pelo governo federal em relação ao ECA Digital foi a edição da Medida Provisória nº 1.319/2025, que reduziu o prazo de vacância da lei de um ano — conforme havia sido aprovado no Congresso — para seis meses. 

A secretária-adjunta de Políticas Digitais da Secom, Nina Santos, explica que a alteração “parte da percepção de que o tema tem uma urgência muito grande” e a adaptação exigirá “um esforço coletivo das plataformas, das agências e do governo para colocar a lei em prática o mais rápido possível”.

O Ministério Público Federal (MPF) anunciou que acompanhará de perto a implementação do ECA Digital. Em ofícios enviados às big techs, o órgão solicitou planos de adequação à nova lei, que incluem mecanismos de aferição de idade, supervisão parental, restrições à publicidade e mudanças de design para reduzir a exposição de menores a conteúdos impróprios.

O monitoramento inicial terá foco em aplicativos como WhatsApp, YouTube, Instagram e TikTok, os mais utilizados por crianças e adolescentes no país.

Zanatta reforça que a lei é inovadora ao atacar não apenas conteúdos ilegais, mas também estruturas de exploração econômica. Ele cita, como exemplo, a proibição de “dark patterns” — técnicas de design que manipulam a tomada de decisão dos usuários —, considerada a primeira norma brasileira a regular esse tipo de prática.

Nina Santos acrescenta que o desafio será harmonizar a atuação dos diferentes órgãos. “Cada agência tem funções específicas a cumprir. O esforço agora é entender como coordenar essas atribuições para que a fiscalização seja efetiva”, afirmou.

2) Regulação econômica das plataformas

Outro ponto central da Agenda Brasil Digital é o Projeto de Lei de Concorrência de Mercados Digitais (PL 4675/25), enviado ao Congresso Nacional pelo governo federal. A proposta busca modernizar as regras de competição no ambiente online e fortalecer a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), criando condições mais equilibradas para empresas e consumidores.

O texto prevê a criação da Superintendência de Mercados Digitais (SMD) dentro do Cade e estabelece um rito específico para enquadrar plataformas de relevância sistêmica — aquelas que concentram grande poder econômico e impactam a capacidade de consumidores e empresas se conectarem.

Plataformas enquadradas nesse critério, com faturamento bruto global acima de R$ 50 bilhões ou R$ 5 bilhões no Brasil, deverão abrir escritório no país, sob risco de multa diária de até R$ 1 milhão em caso de descumprimento.

Além disso, o Cade poderá impor deveres específicos, como submissão de atos de concentração à análise do órgão, divulgação transparente de dados, algoritmos e preços, e proibição de práticas que limitem a competição ou o acesso de concorrentes ao mercado.

Segundo Nina Santos (Secom/PR), o governo manteve um diálogo permanente com empresas e sociedade civil durante a construção do projeto. “Esses diálogos começaram ainda na fase de elaboração do anteprojeto e continuaram depois, envolvendo conversas com plataformas digitais e ministérios. Trata-se de um diálogo constante. É natural que existam divergências, mas o projeto é essencial para garantir um espaço digital moderno, seguro e competitivo”, afirmou.

Abordagem é inovadora

Especialistas apontam que a abordagem do PL é inovadora por não se concentrar no conteúdo publicado, mas nas estruturas econômicas que moldam o mercado digital. Para André Boselli, Coordenador do Programa de Ecossistemas de TICS da ARTIGO 19, a proposta atua sobre causas estruturais que afetam a liberdade de expressão, pluralidade informacional e direitos humanos.

“No ambiente digital, poucas empresas concentram enorme poder e funcionam como uma espécie de ‘privatização da internet’, criando incentivos para disseminar desinformação e discurso de ódio. O PL tem potencial de atuar nessas causas estruturais, sem interferir diretamente no conteúdo”, explicou.

Papel da sociedade civil

O especialista também destaca o papel da sociedade civil. “Um dos grandes méritos do projeto é permitir que a sociedade participe das decisões do Cade, algo que normalmente não ocorre em órgãos reguladores, onde o debate se restringe a reguladores e grandes agentes. Essa abertura é fundamental e deve ser mantida nas próximas etapas”, afirmou.

Para os usuários finais, a expectativa é de mais concorrência, interoperabilidade e diversidade de serviços. Boselli cita como exemplo a possibilidade de desagregar curadoria de conteúdo e hospedagem, permitindo ao usuário escolher provedores diferentes dentro da mesma rede social. 

“O resultado esperado não é apenas individual, mas coletivo e democrático: mais diversidade pode gerar um ecossistema informacional plural, fortalecendo a esfera pública e dando voz a grupos historicamente silenciados”, concluiu.

Próximos passos

Atualmente, o PL 4675/25 aguarda despacho do presidente da Câmara e seguirá o rito legislativo, passando por comissões, debate público e votação no Congresso e no Senado, sem previsão definida para aprovação. A tramitação ainda será determinante para avaliar como o projeto será implementado e quais ajustes poderão surgir a partir das discussões parlamentares e da participação de especialistas, sociedade civil e setores empresariais.

3) Data centers e soberania digital – Redata

O governo federal também avançou na infraestrutura digital com a Medida Provisória nº 1.318/2025, que institui o Programa Nacional para Data Centers (Redata). A iniciativa busca impulsionar investimentos em datacenters no Brasil, reduzindo custos por meio de desoneração tributária de equipamentos essenciais. 

Nina Santos destaca que o Redata tem caráter estratégico ao construir “um ambiente digital brasileiro mais forte e dinâmico, que traga soberania ao país e permita um maior desenvolvimento digital”. Ela acrescenta que a MP cria espaços nacionais para tratamento de dados brasileiros, permitindo que dados públicos e privados sejam processados em território nacional, abrindo oportunidades de investimento e atraindo novos projetos ao país.

Controvérsias

No entanto, a medida gerou preocupações entre organizações da sociedade civil. Em nota conjunta, LAPIN, IDEC e IP.rec apontam falhas no processo de formulação da política e riscos socioambientais: “O texto ignora consulta a comunidades locais, povos indígenas e comunidades tradicionais, não estabelece salvaguardas claras para energia, água ou extrativismo mineral, e reduz a sustentabilidade a uma diretriz opcional, sem mecanismos vinculantes”, afirmam.

Segundo essas entidades, a ausência de exigência de estudos de impacto ambiental e energético pode reproduzir modelos insustentáveis já observados em outros países e em empreendimentos brasileiros, como em Eldorado do Sul (RS) e Caucaia (CE). Na cidade cearense, por exemplo, moradores de comunidades indígenas e rurais já questionam a construção dessas estruturas na região, como mostrou o The Intercept Brasil

Em contraponto, o setor empresarial recebeu a MP de forma positiva. A Brasscom, associação que reúne empresas como Microsoft, Amazon, Apple, Meta e Uber, considera o Redata “um passo decisivo para consolidar o Brasil como hub global de infraestrutura digital e impulsionar a economia digital no país”.

A associação destaca que a medida antecipa desonerações previstas na Reforma Tributária, aumenta a segurança jurídica e cria incentivos para investimentos em energia limpa, inovação e desenvolvimento tecnológico local, com expectativa de expansão nos próximos anos. Segundo a Brasscom, os estudos indicam que, até 2030, os datacenters consumirão menos de 0,01% da água disponível no país e cerca de 4% da energia elétrica nacional, índices considerados plenamente absorvíveis pelo sistema elétrico brasileiro.

Posicionamento oficial

Em resposta, o Ministério da Fazenda afirmou que a sustentabilidade foi definida como pilar central do Redata desde a sua concepção. Segundo a pasta, o programa estabelece padrões ambientais entre os mais rigorosos do mundo, como o uso de energia 100% limpa, neutralidade de carbono desde o início e elevada eficiência hídrica, com exigência de sistemas em circuito fechado e adoção da métrica WUE (Water Usage Efficiency) de 0,05 L/KWh.

O ministério ressaltou que a política aproveita a ampla disponibilidade de fontes renováveis no Brasil e está alinhada ao Plano de Transformação Ecológica. Destacou ainda que o valor agregado por unidade de energia em um data center verde pode superar em até 30 vezes o de outras indústrias limpas, como a do hidrogênio verde.

Quanto à participação social, a Fazenda informou que a sociedade civil pôde participar de consulta pública durante a elaboração da Taxonomia Sustentável Brasileira, que incluiu capítulo específico sobre data centers, e foi convidada a contribuir na recente tomada de subsídios aberta em 26 de setembro para detalhar os requisitos ambientais do Redata.

A pasta também defendeu a opção por manter o arcabouço ambiental já vigente, considerado robusto e com papel central de estados e municípios, atendendo solicitação expressa do Ministério do Meio Ambiente.

4) ANPD como agência reguladora

A transformação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em agência reguladora já é considerada estratégica para o fortalecimento da fiscalização do uso de dados pessoais e a aplicação de normas como a LGPD e o recém-sancionado ECA Digital, ampliando a capacidade de responsabilização do órgão e conferindo ao órgão maior autonomia técnica, administrativa e financeira.

A percepção de Nina Santos é de que essa decisão reforça a estrutura institucional da ANPD, permitindo que ela exerça suas funções de forma adequada. “O órgão já atuava na proteção de dados e na proteção de crianças e adolescentes, mas faltava esse fortalecimento para desempenhar suas atribuições de maneira efetiva”, explicou.

Do ponto de vista da sociedade civil, Rafael Zanatta destaca que a MP consolida um processo de fortalecimento iniciado anos atrás. “A ANPD já operava com independência, mas havia limitações estruturais. A transformação em autarquia especial cria cargos de carreira, autonomia administrativa e financeira e capacidade de atrair profissionais qualificados, permitindo uma atuação mais robusta em investigações e aplicação da lei”, afirmou.

Pacote da Agenda Brasil Digital não abrange regulação de plataformas

A expectativa de envio ao Congresso Nacional de uma proposta de lei abrangente para regular plataformas digitais surgiu a partir de declarações do próprio governo federal, especialmente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e sua ausência foi percebida na Agenda Brasil Digital.

Em entrevista à BandNews FM, no programa O É da Coisa, em agosto, Lula explicou que o projeto já estava em elaboração. O chefe do executivo abordou o tema ao comentar críticas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre suposta censura de perfis em redes sociais, críticas que repercutiram na discussão sobre a aplicação de taxas de importação sobre produtos brasileiros nos EUA.

Para Nina Santos, a ausência de encaminhamento imediato reflete o caráter dinâmico da agenda digital: “A agenda é digital e muito dinâmica, precisando ser constantemente atualizada, tanto do ponto de vista tecnológico quanto político. Certamente podem surgir novas ações, mas, neste momento, nada está programado.”

Ela acrescenta que a decisão de não enviar o projeto neste instante visa observar como o mercado, a sociedade e os diferentes atores institucionais se adaptarão às medidas já sancionadas, como o ECA Digital. “Trata-se de uma decisão de timing: esperar, analisar o ambiente e agir com cautela antes de qualquer encaminhamento futuro”, conclui Santos.

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