Início 9 Destaques 9 Queda de governo no Nepal, após bloqueio de plataformas, acende debate sobre redes, protestos e regulação

Pontos de vista

set 23, 2025 | Destaques, Pontos de Vista

Queda de governo no Nepal, após bloqueio de plataformas, acende debate sobre redes, protestos e regulação

COMPARTILHAR:

Neste mês, o Nepal ganhou as manchetes por uma série de protestos mobilizados pela geração Z que tomaram o país. Inicialmente atribuída ao banimento de 26 plataformas pelo governo, a onda de protestos foi seguida de mortes, destruição de prédios, órgãos da imprensa, casas de políticos, a renúncia do primeiro-ministro e, por fim, a nomeação de uma primeira-ministra interina no país.

O banimento das plataformas foi apenas a faísca de um problema maior. A insatisfação da geração Z no Nepal não é de hoje. Há décadas, os nepaleses protestam contra a estagnação político-econômica, o desemprego, a corrupção e a impunidade. Mais recentemente, as redes sociais deram visibilidade aos filhos de políticos e das elites, que exibem um estilo de vida luxuoso em contraste com a realidade da maioria da população, gerando revolta na geração Z, que levou seus protestos às redes e às ruas.

Os acontecimentos no Nepal não apenas trazem uma reflexão sobre o papel das redes nesses protestos, como também trazem luz ao debate sobre a responsabilidade das plataformas diante de certas demandas regulatórias.

Desenrolar dos Eventos 

O Nepal tem uma população de 30 milhões de pessoas, das quais 40% pertencem à geração Z, 56% têm acesso à internet no país e 48% desses usuários estão nas redes. No caso do Nepal, elas são ainda mais cruciais para manter os laços com a diáspora nepalesa que vive e trabalha em diferentes partes do mundo.

No dia 4 de setembro, o governo do Nepal ordenou o banimento de 26 plataformas — entre elas Facebook, Instagram, YouTube, WhatsApp, X e Discord — por descumprirem a nova lei de plataformas (Social Media Act (Bill), 2081). A legislação exigia que as plataformas estivessem registradas e com escritórios locais no país, bem como designassem um responsável para receber reclamações e estabelecessem processos de moderação contra conteúdos problemáticos. Especialistas e membros da sociedade civil apontam que a lei é vaga e pode abrir brechas para censura e violações da liberdade de expressão. Com exceção do TikTok, todas plataformas se recusaram a atender às exigências. 

O banimento das plataformas foi interpretado como uma tentativa de censurar a indignação da população nas redes. Enquanto o governo do Nepal buscava implementar medidas para regular as plataformas estrangeiras, a sociedade nepalesa — em especial a geração Z, frustrada com a desigualdade, a falta de oportunidades e o nepotismo enraizado no país — tomou as ruas em protesto no dia 8 de setembro. Inicialmente, um ato que deveria ser pacífico, se tornou rapidamente violento levando à queda do governo em menos de 30 horas. 

Democracia Digital ou o Levante de Novas Elites?

As redes sociais foram rapidamente restabelecidas no Nepal. Em meio ao caos, parte da geração Z nepalesa — dentro e fora do país — passou a se reunir em servidores anônimos do Discord para discutir a próxima liderança, agendas políticas e a formação de um governo interino. O principal servidor, moderado pelos organizadores originais dos protestos, atingiu o limite de 10 mil usuários. As discussões foram transmitidas ao vivo pelo YouTube para ampliar o alcance, e em outro servidor, com mais de 145 mil membros, realizou-se um debate sobre possíveis líderes.

A geração Z se organizou através das redes sociais, emitindo notas públicas, alertando sobre a desinformação e indicando o possível futuro do país. Alguns usuários chegaram a afirmar que o “parlamento do Nepal agora é o Discord”. Em uma votação informal na plataforma, a ex-juíza Sushila Karki foi indicada como primeira-ministra interina. Para a população, a escolha tem caráter simbólico, já que pela primeira vez uma liderança fora das elites assume destaque. A geração Z demanda que as eleições oficiais sejam realizadas em março de 2026.

Muitos comemoraram o uso das redes sociais nesse processo. Porém, é preciso ter cautela em atribuir às plataformas um papel político central. No Nepal, o Discord não está entre as redes mais utilizadas e apenas metade da população tem acesso à internet. Em um processo aparentemente democrático, o que vemos é a exclusão digital que deixa parte da sociedade sem voz no debate político. Assim, é preciso cuidado para não substituir uma elite analógica por uma elite digital.

Disputa de Poderes 

O que está acontecendo no Nepal evidencia o descontentamento da população com o estado do país e como o uso das redes e a linguagem da geração Z têm influenciado o debate político. Se, por um lado, as redes se tornaram o canal de divulgação do espetáculo do estilo de vida das elites, por outro, por meio de hashtags como #nepobaby e #nepokids, protestos online também se disseminaram para criticar as próprias elites.

Nessa disputa, as plataformas estrangeiras também são protagonistas dos eventos. Embora o descontentamento da população já venha de longa data, as plataformas tiveram um papel importante ao rejeitar as demandas de regulação. É certo que não podemos atribuir às redes a responsabilidade pela mobilização online, mas não podemos deixar de refletir sobre o que teria acontecido se as plataformas tivessem atendido às exigências regulatórias do governo nepalês. Qual teria sido o destino dessas mobilizações?

Assim, ficam as perguntas: Qual deve ser o papel dessas empresas diante de tais demandas de governo? Cumprir determinações locais sem fazer um julgamento político ou econômico, em nome do respeito à soberania nacional — como fez o TikTok —, ou desafiar essas exigências pois afeta os seus negócios — como fizeram as outras plataformas? 

O que vimos, ao final, foi uma disputa de poder também entre as plataformas e o governo e não uma preocupação pela liberdade de expressão da população nepalesa. 

As demandas afetariam diretamente o modelo de negócios dessas empresas e, em um país onde apenas 56% da população tem acesso à internet, as plataformas traçaram suas próprias estratégias. O TikTok apostou no potencial de expansão digital, enquanto outras concluíram que cumprir as regras sairia mais caro.

Nesse cenário, as empresas que não cumpriram as regras decidiram testar os limites do governo diante das sanções. Intencionalmente ou não, a aposta na não cooperação diante do bloqueio de seus serviços mudou o rumo do jogo: as plataformas voltaram, o governo que buscava regulá-las caiu, a geração Z intensificou o engajamento online e as empresas foram celebradas pela mesma mídia internacional ocidental que tantas vezes as criticam.

Primavera Asiática?

Para quem acompanhou a Primavera Árabe em 2010, é fácil olhar para o Nepal e traçar paralelos. Naquela época, a imprensa internacional foi rápida em atribuir às redes sociais um papel central nas mobilizações. Para alguns, a Arab Spring (Primavera Árabe) também ficou conhecida por muitos como a Facebook Revolution (Revolução Facebook), minimizando o verdadeiro papel da população na disputa democrática na região.

Nos últimos dias, parte da imprensa internacional começou a traçar paralelos, sugerindo  a uma possível Asian Spring (Primavera Asiática) ou South Asian Spring (Primavera do Sul da Ásia). Protestos semelhantes ao do Nepal já foram registrados em Bangladesh (2024), Sri Lanka (2022) e Indonésia (2025). Na Tailândia e nas Filipinas, o descontentamento com nepotismo e corrupção também tem se manifestado. 

O Oriente Médio não é a Ásia e nem a Ásia é um bloco homogêneo. É preciso evitar comparações entre regiões e países com culturas, idiomas e demandas sociais, políticas e econômicas diferentes. Porém, se o passado pode informar o presente, é importante lembrar que a Primavera Árabe acabou beneficiando as plataformas, que expandiram sua base de usuários, aumentaram o engajamento, desafiaram regulações e ignoraram pedidos de organizações civis e ativistas pela proteção da privacidade online e da liberdade de expressão na região. No final, as plataformas saíram ganhando em meio à disputa política local.

COMPARTILHAR:
Andressa Michelotti

Doutoranda do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisadora do Margem — Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG) e membro do Governing the Digital Society na Universidade de Utrecht, Holanda.

0
Would love your thoughts, please comment.x