No último dia 15 de setembro, o mundo celebrou o Dia Internacional da Democracia. Quatro dias antes, em 11 de setembro, o Brasil viveu um marco que reforça o peso simbólico da data: pela primeira vez em sua história, um ex-presidente da República e militares de alta patente foram condenados judicialmente por atentar contra as instituições democráticas.
O julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), que responsabilizou Jair Bolsonaro e outros sete réus, já é considerado o mais importante da história da democracia brasileira, especialmente desta última República, a mais longeva e consolidada do Brasil.
O processo de responsabilização seguiu todas as etapas previstas em lei: investigação da Polícia Federal, denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República, aceitação pelo Supremo Tribunal Federal, prazo para manifestação da defesa, distribuição e análise das provas e, por fim, o julgamento — que incluiu inclusive um voto divergente de um dos ministros.
“Ficam enfraquecidos os argumentos de que o processo teria sido apressado ou conduzido de forma indevida. Pelo contrário: os ministros deixaram claro que a condenação respeitou o devido rito legal, assegurando ampla defesa e contraditório. O episódio mostra que a democracia brasileira, ainda que atacada, possui mecanismos sólidos para se proteger”, analisou Arthur Mello, Coordenador de Advocacy no Pacto pela Democracia.
Na mesma linha, o cientista político e Coordenador de projeto no Instituto Democracia em Xeque, Paulo Roberto Souza, avalia que a decisão sinaliza de forma inequívoca que “existe uma maioria [no STF] comprometida com a defesa da democracia e das instituições brasileiras”, enviando um recado direto a atores políticos que cogitem apoiar aventuras golpistas no futuro. A condenação, acrescenta Paulo, funciona não apenas como punição, mas como um marco simbólico, reafirmando que a Constituição e o equilíbrio entre os Poderes permanecem como limites inegociáveis.
No centro da discussão está a desinformação. Como mostramos em reportagem anterior, ela aparece de forma recorrente no conjunto de evidências reunido pela Procuradoria-Geral da República (PGR), sobretudo em relação ao sistema eleitoral — elemento determinante em toda a escalada golpista vivida pelo Brasil, da live de Jair Bolsonaro em 29 de julho de 2021 até os ataques às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.
“O grupo registrou a ideia de ‘estabelecer um discurso sobre urnas eletrônicas e votações’ e de replicar essa narrativa ‘novamente e constantemente’, a fim de deslegitimar possível resultado eleitoral que lhe fosse desfavorável e propiciar condições indutoras da deposição do governo eleito”, registra a denúncia apresentada pela PGR.
Para Arthur Mello, sem essa estratégia deliberada de desinformação, articulada por uma parte relevante da elite política da época, o desenlace teria sido outro. “Nada disso teria acontecido, porque as pessoas foram convencidas de que, se o resultado das eleições não fosse o esperado, era porque o sistema estaria fraudado”, afirma.
Especialistas ouvidos pelo Desinformante consideram que o julgamento do STF marca um momento-chave na história recente do país, também por evidenciar o papel danoso da desinformação e abrir espaço para que a agenda de regulamentação das plataformas digitais avance. O debate sobre autonomia e responsabilização das empresas de tecnologia, ressaltam, é decisivo para enfrentar o descrédito no sistema eleitoral e prevenir novas tentativas golpistas.
➡️ Relembre o resultado do julgamento
O julgamento do núcleo central da tentativa de golpe foi conduzido pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), sob a presidência de Cristiano Zanin. Relator do caso, Alexandre de Moraes votou pela condenação e foi acompanhado por Zanin, Cármen Lúcia e Flávio Dino. Apenas Luiz Fux divergiu, resultando em placar de 4 a 1 contra o ex-presidente Jair Bolsonaro.
A denúncia da Procuradoria-Geral da República imputou aos réus crimes como organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
As penas aplicadas foram:
– Jair Bolsonaro (ex-presidente da República): 27 anos e três meses;
– Walter Braga Netto (ex-ministro e candidato a vice-presidente em 2022): 26 anos;
– Almir Garnier (ex-comandante da Marinha): 24 anos;
– Anderson Torres (ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança do DF): 24 anos;
– Augusto Heleno (ex-ministro do GSI): 21 anos;
– Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa): 19 anos;
– Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro): 2 anos em regime aberto, com liberdade garantida pela delação premiada;
– Alexandre Ramagem (ex-diretor da Abin): 16 anos, um mês e 15 dias.
O impacto nas redes e as contradições do voto de Fux
O último dia do julgamento foi o ponto mais alto do engajamento digital em torno do caso. Segundo análise do Instituto Democracia em Xeque, o voto do ministro Luiz Fux, em 10 de setembro, gerou 314 mil menções por hora nas plataformas, mas foi a definição das penas, no dia seguinte, que levou o debate ao ápice: 321 mil menções por hora.
Pela primeira vez, o campo progressista superou o conservador em volume de postagens e interações no X (antigo Twitter), Facebook e Instagram – um sinal de que a condenação de Jair Bolsonaro foi não apenas acompanhada, mas amplamente celebrada.
Na leitura de Paulo Roberto, esse engajamento revela uma disputa que vai além da polarização clássica entre projetos políticos. “O que enfrentamos neste momento é um tipo de polarização em que o polo que teve sua principal liderança condenada comprovadamente estimula ataques à democracia e às instituições republicanas”, avalia.
Ainda assim, ele ressalta que existe uma maioria social que enxerga no processo e na decisão do STF uma demonstração de força institucional e de isonomia. Para essa parcela, a condenação fortalece a confiança nas regras democráticas.
O voto divergente de Luiz Fux, no entanto, expôs tensões dentro do próprio Supremo. Em quase 14 horas de leitura, o ministro absolveu Jair Bolsonaro e outros cinco réus por crimes contra a democracia, condenando apenas Mauro Cid e Walter Braga Netto por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. Além disso, defendeu a nulidade de todo o processo, por entender que o STF não seria a instância competente para julgar a ação. A posição destoou não só do conjunto de provas já reconhecidas pelos demais ministros, mas também da mensagem de coesão institucional que o julgamento projetava.
O que esperar de 2026
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, o julgamento do núcleo central da tentativa de golpe deixa lições importantes para o futuro, especialmente diante das eleições de 2026.
Arthur Mello avalia que ainda persiste na sociedade brasileira um discurso de caráter antidemocrático. Ele ressalta que candidaturas que tentem capitalizar sobre ataques às instituições ou colocar em dúvida a lisura do processo eleitoral precisarão arcar com maior responsabilidade: “Não se trata de meras opiniões. Quando um candidato questiona a confiança nas urnas eletrônicas ou defende pautas golpistas, isso pode ser considerado um atentado à democracia”, afirmou.
Na mesma direção, Paulo Roberto chama atenção para a necessidade de articulação das forças democráticas. Para ele, embora parte do eleitorado siga radicalmente alinhada a pautas antidemocráticas — inclusive defendendo anistia para envolvidos nos ataques de 8 de janeiro —, há espaço para reorganizar o debate político.
“É fundamental que lideranças, partidos, candidatos e ativistas, da direita à esquerda, se articulem para conter o avanço desse polo antidemocrático. Mais do que defender apenas a democracia, é preciso construir um campo político que respeite as regras constitucionais e avance em projetos de Brasil e demandas que hoje estão secundarizadas pela crise prolongada”, destacou.
Anistia em debate
A repercussão do julgamento também se conecta com os debates em torno da anistia no Congresso. A Câmara dos Deputados aprovou, no último dia 17, o requerimento de urgência para um projeto que concede anistia aos envolvidos em atos antidemocráticos ocorridos a partir de outubro de 2022. A proposta, que ainda não está pronta, mas, segundo a imprensa, baseia-se no projeto de autoria do deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), abrangerá não apenas participantes diretos, mas também aqueles que ofereceram apoio por meio de doações, serviços, logística e publicações em mídias sociais e plataformas.
Para o especialista Arthur Mello, a urgência dada a essa medida levanta questionamentos sobre suas reais motivações:
“Se pensarmos especificamente no 8 de janeiro — que é o pretexto usado pelo campo anti-democrático —, a narrativa costuma focar em ‘liberar as senhorinhas com Bíblia’ ou a Débora do Batom, como se fossem essas as pessoas alvo da anistia. Na prática, das mais de 1.000 pessoas julgadas e condenadas pela tentativa de golpe, menos de 150 estão presas. Ou seja, o Congresso está parando o trabalho legislativo do país para tratar de um grupo muito pequeno dentro de um universo de mais de 800 mil pessoas encarceradas.”
Arthur reforça que a proposta se mostra diretamente voltada a beneficiar os principais condenados no julgamento recente — o ex-presidente, os generais, o almirante, a cúpula das Forças Armadas — e se soma a outras iniciativas recentes do Congresso marcadas pela busca de impunidade, como a PEC da blindagem e a nomeação de Eduardo Bolsonaro como líder da minoria na Câmara.
O texto do projeto ainda passará por alterações pelo relator Paulinho da Força (Solidariedade-SP) e precisa de maioria simples para ser aprovado (257 votos), desde que haja quórum mínimo em plenário. Se aprovado na Câmara, seguirá para o Senado, onde o presidente Davi Alcolumbre (União-AP) definirá se tramitará em regime de urgência, o que permitiria levar o texto direto ao plenário, sem passar pelas comissões.
Alcolumbre já se manifestou contrário a uma anistia ampla que beneficie Jair Bolsonaro, defendendo nos bastidores uma alternativa conhecida como “anistia light”, baseada em proposta do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que prevê apenas redução de penas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que vetará qualquer trecho que inclua o ex-presidente Jair Bolsonaro, cabendo ao Congresso decidir se mantém ou derruba o veto.