Com o desenrolar dos eventos de 8 de dezembro e a queda de Bashar al-Assad na Síria, especialistas e observadores da região destacam que o futuro da Síria permanece incerto, existindo múltiplos caminhos possíveis para o país. Essa mesma incerteza se reflete na presença online de atores hoje designados como terroristas, indicando desafios semelhantes em termos de governança online.
Atualmente, Abu Mohammad al-Julani, líder do grupo militante islâmico Ha’yat Tahrir al-Sham (HTS), é uma das figuras centrais no debate do futuro da Síria pós-Assad. Al-Julani teve conexões diretas com a Al-Qaeda e com Abu Bakr al-Baghdadi, líder do Estado Islâmico no Iraque (ISIS). O HTS foi acusado pela ONU de cometer crimes de guerra e de perseguir minorias durante sua liderança. Al-Julani afirma ter rompido com suas conexões passadas e hoje busca uma aliança nacional na Síria, afirmando também declara ter adotado uma postura mais moderada, comprometendo-se com maior pluralismo e tolerância religiosa.
Até o momento em que este artigo foi escrito, tanto a Síria quanto o HTS e Al-Julani são sancionados pelo governo dos Estados Unidos. A Síria é classificada como “patrocinadora do terrorismo” desde 1979, o que impede empresas norte-americanas, como as Big Techs, de operarem e fazerem negócio com o país. Já o HTS continua sendo considerado um grupo terrorista, uma designação considerada injusta por Al-Julani.
Com o desenrolar dos eventos na Síria, tanto a ONU quanto os Estados Unidos, Reino Unido e a União Europeia discutem a possibilidade de retirar o grupo da lista de organizações designadas como terroristas. Nesse contexto, surgem questões importantes: qual deve ser a postura das plataformas quando um grupo considerado terrorista é legitimado em um país? O que acontece quando este grupo deixa de ser classificado como terrorista? E, por fim, quem tem a autoridade para tomar essa decisão?
As respostas para estas perguntas são, sem dúvida, complexas pois a questão central é sobre quem possui o direito de legitimar o discurso e a representação política de um determinado país nas redes sociais. Isso se torna mais relevante se considerarmos que plataformas de massa — como X, Google, Meta, TikTok—, desempenham um papel crucial para o debate público em outros países e para que representantes políticos se comuniquem diretamente com seus constituintes.
A Presença de Grupos Designados Terroristas nas Redes
Assim como as redes sociais são cruciais para que ativistas e a sociedade civil disseminem informações, organizem eventos e cubram protestos, elas são ferramentas importantes para grupos designados como terroristas recrutarem membros, planejarem atividades, disseminarem violência e propaganda, e ganharem apoio de seus seguidores.
Plataformas como Meta, Youtube, Google, TikTok e X não permitem contas de indivíduos ou grupos designados como terroristas pelo governo dos Estados Unidos ou pelas Nações Unidas. Muitas vezes esse conteúdo é bloqueado antes mesmo de ser publicado ou, quando identificado online, ele é removido das plataformas. Isso inclui também conteúdo que tenta incitar a violência, ataques e promoção de ódio.
Essas postagens e contas podem ser excluídas por violar as políticas de violência e extremismo das plataformas ou por outras políticas como manipulação de informação, comportamento inautêntico, spam etc. Parte das iniciativas de governança de plataforma consiste também na colaboração da indústria de tecnologias e políticas de conteúdo para combater a violência e o extremismo
Embora existam políticas e tecnologias para impedir que esses atores estejam nas plataformas, muitos exploram falhas tecnológicas e lacunas nas políticas para manter sua presença online. Além disso, a moderação de conteúdo pode apresentar falhas.
O caso Talibã
O caso do Talibã é relevante para o entendimento da possível presença do HTS nas redes: no mesmo ano em que o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, foi banido de várias plataformas, o Talibã retomou o poder no Afeganistão, e fez notícia por sua presença online.
Embora o Talibã seja um grupo reconhecido por alguns países como representante oficial no Afeganistão, o grupo está na lista de organizações designadas como terroristas.
Oficialmente, tanto o grupo quanto seus representantes não têm presença nas redes sociais de massa. Porém, contas do Talibã e seus representantes, também sancionados pelos Estados Unidos, foram identificados em plataformas como YouTube, Facebook e Twitter (hoje X).
Um estudo realizado entre 2021 e 2022 demonstrou que o Twitter monetizava com a presença do Talibã. Parte do conteúdo publicado incluía mensagens de violência, propaganda, celebração de vitórias militares e desinformação com o objetivo de ganhar legitimidade.
Quanto ao HTS, este também não tem presença oficial nas plataformas devido às sanções, porém, um estudo de 2021 feito por The Global Network on Extremism and Technology (GNET) revelou que parte da comunicação digital do grupo operava através de uma agência de notícias vinculada a canais no Telegram, e dentre as mensagens estaria a forte disseminação de propaganda. Em 2023, conteúdos específicos e canais vinculados ao grupo na plataforma foram removidos. No entanto, o HTS ainda mantém presença nas redes.
Quem decide?
Visto que a maioria das redes sociais ocidentais têm sua origem nos Estados Unidos, essas plataformas remetem às sanções do Departamento de Estado dos país para orientar suas decisões de governança. Ou seja, caso um grupo ou um indivíduo seja designado terrorista pelos Estados Unidos ou pelas Nações Unidas, as plataformas implementam medidas de bloqueio para impedir sua presença em seus ambientes digitais.
Uma vez que organizações como a ONU, o Departamento de Estado dos Estados Unidos, a União Europeia, dentre outros players relevantes em questões geopolíticas removem as sanções de determinados grupos, indivíduos ou países, a responsabilidade de decisão de quem pode estar online e como fazer negócios com estes atores passa a recair sobre as Big Techs.
Nestes cenários, as empresas de tecnologia não têm um manual de instruções claro a seguir. Certamente elas têm o total controle absoluto sobre quem e o que pode estar presente em suas plataformas. Assim, as Big Techs, como empresas com fins lucrativos, avaliam suas relações políticas, interesses e riscos comerciais e imagem pública para a tomada de decisão.
O debate sobre a legitimidade de um grupo ou país é essencial para compreender as decisões das grandes plataformas — como Google, Meta, X, TikTok e Telegram —, sobre quem pode participar do debate público em seus produtos. Nesse contexto, três cenários principais emergem: primeiro é a análise de quanto um grupo ou ator designado como terrorista representa de fato um país soberano; segundo, é a pergunta de como proceder quando um grupo deixa de ser classificado como terrorista e assume uma representação oficial; e, por fim, a abordagem em relação a líderes de países sancionados, como no caso da Síria.
Um Futuro Possível
Existe grande incerteza do futuro da democracia da Síria. É evidente que as Big Techs desempenham um papel geopolítico relevante, muitas vezes assumindo funções típicas de países hegemônicos no cenário global. Tal posição lhes confere poder e discrição em questões críticas, lidar com questões críticas, especialmente em situações marcadas por um vácuo de poder
Como eu já argumentei no passado, no que diz respeito ao uso das redes sociais por determinados atores, é necessário adotar uma abordagem democrática onde haja uma coalizão independente, liderada pela sociedade civil local, que represente as necessidades locais e forneça estratégias e recomendações para tomada de decisões das plataformas, respeitando os limites e contextos específicos de seus países. Este não é um argumento que defende a presença de conteúdos de ódio, violência, propaganda e desinformação, mas sim um debate sobre a legitimidade da presença online de certos atores e quem deve decidir a sua presença.
Portanto, nesse processo é necessário não ignorar a relação entre sociedade civil e plataformas. Organizações como SMEX e EFF reportam que a sociedade civil árabe e ativistas interessados em proteger a privacidade online e o direito à liberdade de expressão enfrentam grandes desafios. Em uma região onde o espaço online se torna crucial para conexão, mobilização e documentação de violações de direitos humanos, essas vozes são frequentemente ignoradas pelas plataformas.
Em muitos casos, existe uma intensificação da censura em países como a Síria. Neste caso, as plataformas devem ir além do tradicional “playbook” focado na política e no lucro, e priorizar representação democrática, protegendo as necessidades das vozes dissidentes, minorias e da sociedade civil enquanto respeitando o processo democrático da sociedade fornecendo transparência e accoutability.
Este é um bom momento para considerar novas estratégias que definam a governança das plataformas em assuntos políticos externos. Assim, é necessário repensar a governança nesses cenários, não para advogar a presença de grupos e indivíduos que disseminem desinformação, mensagens de ódio, ou instiguem violência, mas sim para desenvolver estratégias aplicáveis em situações que não fazem nem parte do “manual de instruções” dos Estados Unidos e nem se limitam somente aos interesses comerciais das plataformas.
Certamente essas questões são complexas e essa é uma visão idealista de um futuro, porém esses são elementos que necessitam reflexão e que vão além do caso que vemos hoje na Síria.