Nas últimas duas semanas estive de férias. Viajei e me desconectei. Me permiti, em muito tempo, tirar as notificações de notícias e e-mails do celular. No meu último dia off, na quarta-feira passada, fui ver ‘Ainda estou aqui’. Saí da sessão, como todos ao meu redor, completamente impactada pela sensibilidade e o brilhantismo do filme. É, de fato, uma obra arrebatadora. Só não previa que, quando voltasse ao ‘mundo real’, na quinta-feira, estivesse mais perto dos anos 60/70 do que eu imaginava.
Os planos golpistas expostos pela Polícia Federal na semana passada revelam que estivemos mais perto de uma ruptura do Estado Democrático do que achávamos – e olha que já tínhamos alertado outras vezes desse perigo iminente. O 8 de janeiro nos deu uma materialidade do ponto em que nos encontrávamos como sociedade e a tentativa de golpe revelada evidencia claramente como o autoritarismo continua presente nas entranhas do poder.
Eu sei que o que estou falando parece óbvio, mas, infelizmente, ainda me parece que não. Assusta-me ver como parecemos, enquanto sociedade, ter normalizado tantas coisas. De um lado, a indignação parece ter dado espaço para a apatia, a resignação. Do outro, as justificativas se acumulam nos deixando sem saber se há um fundo do poço ou se a corda continuará sendo esticada – e sustentada por apoiadores.
Alegar que as eleições foram fraudadas sem provas? “Não é nada demais, todo mundo pode questionar”. Invadir e depredar a sede dos três poderes? “As pessoas têm o direito de se manifestar”. Planejar um golpe de Estado matando o presidente e vice eleitos e um ministro do Supremo? “Tudo bem, pensar e planejar não é crime”.
Esse esticar é um exemplo do que tentamos, dia após dia, mostrar no *desinformante: uma desinformação não é apenas uma informação falsa. É uma porta para o descrédito nas instituições – não à toa descredibilizar agora a Polícia Federal que anos atrás era considerada idônea -, para o revisionismo histórico e para a mobilização de massas com aspirações golpistas.
Em um dos áudios divulgados pela Polícia Federal, o General Mario Fernandes, preso pelo plano golpista, cita uma live feita pelo argentino Cerimedo com informações falsas sobre fraude no sistema eleitoral. “O relatório do MD [Ministério da Defesa], ele não pode ser diferente do que disse essa live argentina”, disse o general.
“Tá na cara que houve fraude, p*. Tá na cara, não dá mais pra gente aguentar esta p*, tá f*. Tá foda. E outra coisa, nem que seja pra divulgar e inflamar a massa. Pra que ela se mantenha nas ruas, e aí sim, p*, talvez seja isso que o alto comando, que a defesa quer. O clamor popular, como foi em 64”, complementou Mario Fernandes no áudio registrado pela PF.
Enquanto não houver um enfrentamento sério ao revisionismo histórico e à impunidade que marca crimes de regimes autoritários — passados e presentes —, a democracia continuará frágil. A ausência de punição aos responsáveis por violações durante a ditadura abriu caminho para que novos atores flertassem com o golpismo, certos de que as consequências seriam mínimas.
E se você terminou esse texto e continua relativizando os acontecimentos recentes e a história passada, faça-me um favor e vá ao cinema! Se o macro não te atinge, quem sabe o microcosmos da família Paiva te sensibilize. E que, no futuro, o legado de Rubens e Eunice ainda estejam aqui, mas o espírito golpista não.