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set 30, 2024 | Pontos de Vista

Como o dinheiro das big techs está remodelando o jornalismo

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Quando a era digital surgiu, os gigantes da tecnologia foram vistos como os algozes do jornalismo. Ironicamente, agora eles se posicionam como os redentores dessa mesma indústria, enquanto aumentam o domínio sobre o cenário global da mídia.

Essas empresas estão investindo bilhões de dólares em iniciativas de inovação, treinamento e sustentabilidade para redações ao redor do mundo. Projetos como o Google News Initiative e o Meta Journalism Project surgem como promessas de um novo fôlego para um setor que luta para se adaptar às rápidas mudanças de comportamento do consumidor e à queda de receitas tradicionais.

Mas, à medida que essas empresas de tecnologia se colocam como as guardiãs do futuro do jornalismo, surge uma pergunta inevitável: a que custo essa “salvação” está sendo oferecida, e o que isso significa para a independência editorial e a liberdade de imprensa?

Um exemplo é a Google News Initiative (GNI). O programa visa “ajudar as organizações de notícias e jornalistas a prosperarem na era digital”. Em particular, o projeto “Desafio de Inovação” foi desenvolvido pelo Google para capacitar organizações de mídia em todo o mundo a “inovar no jornalismo online, desenvolver novos caminhos para a sustentabilidade e compreender melhor suas comunidades”. Embora iniciativas como a GNI ofereçam financiamento essencial para inovação, elas podem inadvertidamente criar uma nova forma de dependência das gigantes da tecnologia.

Nosso estudo publicado em agosto deste ano no International Journal of Cultural Studies ajuda a revelar como o “filantrocapitalismo” das big techs está redefinindo o futuro do jornalismo no mundo. Esta pesquisa, abrangendo África, América Latina e Oriente Médio, revela uma complexa teia de dependência que se forma entre redações com dificuldades financeiras e os cofres do Vale do Silício.

À medida que as fontes de receita tradicionais se esgotam, as organizações de mídia recorrem cada vez mais à “filantropia tecnológica”, soando alarmes sobre o futuro do jornalismo isento.

Filantropia tecnológica como uma faca de dois gumes

Empresas de tecnologia como Meta e Google estão se tornando parte integral da infraestrutura de distribuição de notícias, enquanto novos players, como OpenAI e Microsoft AI, estão revolucionando as capacidades de criação de conteúdo utilizando inteligência artificial (IA). Embora reconhecidamente forneçam infraestrutura vital e oportunidades de inovação, são as mesmas empresas que inicialmente desestabilizaram os modelos de negócios tradicionais do jornalismo.

De acordo com as organizações financiadas que ouvimos, o Google as incentivou a planejarem a sustentabilidade desde o início. Por exemplo, Stears, uma organização de mídia da Nigéria, tentou priorizar a sustentabilidade desde o começo, conseguindo minimizar desafios e manter suas operações diárias de forma mais estável.

Mas essa não foi a realidade para muitos outros projetos que lutam para avançar além das etapas iniciais ou se sustentar a longo prazo, destacando os desafios da inovação impulsionada pela tecnologia nas redações. Outros acabaram sendo descontinuados. Pelo menos oito projetos das organizações que entrevistamos foram desativados ou nunca foram disponibilizados publicamente.

Dois projetos promissores voltados para melhorar a acessibilidade e a precisão da informação no Brasil foram, infelizmente, descontinuados. O app Lume, desenvolvido para fornecer uma solução de comunicação e tecnologia para que pessoas cegas e com deficiência visual possam consumir conteúdo jornalístico local, e o ConfereAI, uma ferramenta de IA projetada para ajudar os usuários a verificar a precisão de links e textos curtos, ambos mostraram um potencial significativo. No entanto, devido a limitações financeiras e técnicas, o desenvolvimento desses projetos não pôde ser mantido após o lançamento inicial.

Embora o financiamento inicial seja útil, as redações carecem dos recursos ou da expertise necessários para implementar e manter plenamente essas inovações tecnológicas. Isso levanta preocupações sobre a criação de uma “síndrome de dependência”, onde as organizações de notícias se sentem compelidas a criar projetos que alinham-se à visão de inovação das Big Tech para sobreviver.

A pesquisa também revelou uma tendência de terceirização do desenvolvimento técnico, muitas vezes para empresas ou indivíduos fora do país da organização de notícias. Embora essa prática seja economicamente vantajosa a curto prazo, ela levanta questões sobre o desenvolvimento de capacidades a longo prazo dentro das organizações de notícias e o potencial para uma nova forma de “colonialismo digital”.

Colonialismo digital é a imposição de tecnologias e abordagens digitais centradas no Ocidente em países do Sul Global, refletindo a antiga dominação das potências coloniais. Isso pode ser observado na GNI, que busca aplicar métodos de desenvolvimento rápido e enxuto, inspirados em startups. Essas abordagens podem não ser totalmente adequadas para a indústria de mídia, que opera sob restrições de recursos e tradições diferentes. A entrevistada do veículo independente AzMina concorda. “Faltava uma equipe interna dedicada a esse tipo de trabalho, e não tínhamos os recursos financeiros para contratar os profissionais necessários para um projeto [do tipo],” explica.

O Fator IA

O papel da IA na definição do futuro do jornalismo está em ascensão, com muitos projetos tentando introduzir essa inovação nas redações. Essa transformação tecnológica no cenário jornalístico concentra ainda mais o controle sobre a infraestrutura de distribuição e criação de notícias nas mãos de grandes empresas da tecnologia. O estudo revela um cenário de encruzilhada para a profissão: enquanto a promessa de tecnologias avançadas é atraente, há o risco de sacrificar o papel do jornalismo independente em prol do progresso digital.

A questão do poder no jornalismo vai muito além do financiamento para inovação. Recentemente, debates acalorados sobre o pagamento pelo uso de conteúdo jornalístico tomaram o centro das discussões, com países como Austrália e Canadá aprovando leis que exigem que empresas de tecnologia compensem financeiramente as organizações de mídia pelo uso de seus conteúdos.

No Brasil, a discussão em torno do PL 2630, conhecido como o projeto de Lei das Fake News, revelou uma postura semelhante por parte das gigantes da tecnologia. Em tom de ameaça, o Google sugeriu que novos investimentos seriam desestimulados, inclusive o Desafio de Inovação, caso a lei fosse aprovada, indicando o peso político que essas plataformas exercem no cenário global.

Por décadas, as organizações de notícias enfrentaram desafios constantes com a queda de receitas. Nos últimos tempos, grandes grupos de países ocidentais firmaram acordos para licenciar conteúdo a empresas de tecnologia que utilizam inteligência artificial.

Essa estratégia se apresenta como uma oportunidade promissora para monetizar vastos arquivos e a produção contínua de notícias, permitindo que veículos de comunicação obtenham novas fontes de receita.

Com esses recursos adicionais, as organizações de mídia têm a chance de investir em novos formatos e tecnologias, potencializando sua inovação e relevância. Parcerias com gigantes da tecnologia também oferecem a possibilidade de ampliar o alcance das notícias, atingindo um público mais amplo e consolidando um papel mais significativo no cenário global de informação.

Para as empresas de tecnologia, adquirir licenças para conteúdo jornalístico de qualidade não só enriquece seus produtos e serviços, mas também valoriza suas plataformas. O problema é até quando e quem vai receber esses recursos.

O dilema do jornalismo

Estamos em um momento crítico, em que a inovação tecnológica é crucial para o futuro do jornalismo, assim como foi no surgimento da internet. Existe um risco potencial de dependência excessiva das Big Tech para obter alívio financeiro imediato, mas isso pode não ser uma solução sustentável a longo prazo.

A indústria de notícias precisa desenvolver modelos de receita mais diversificados e resilientes para garantir sua sobrevivência frente à contínua disrupção digital. Confiar na receita proveniente de empresas de tecnologia pode criar uma dependência que pode comprometer a isenção das organizações de notícias. Mudanças em algoritmos, políticas ou foco de mercado dessas empresas podem impactar abruptamente as fontes de receita dos veículos de notícias.

Há um risco de que o conteúdo licenciado seja usado de maneiras que diluam sua qualidade ou contexto. Plataformas de IA podem interpretar mal ou deturpar o conteúdo jornalístico, minando ainda mais a confiança do público.

Há necessidade de uma reavaliação da relação entre empresas de tecnologia e organizações de mídia, com parcerias equilibradas, maior transparência nas iniciativas de financiamento e estruturas regulatórias mais fortes para proteger a integridade jornalística.

O estudo mostra que a influência dos gigantes da tecnologia pode ser mais pronunciada em regiões onde as organizações de notícias lutam com recursos limitados. Existe o risco de se criar um ecossistema global de notícias de duas camadas, onde apenas as organizações bem financiadas conseguem acompanhar os avanços tecnológicos. Essa disparidade pode ter implicações de longo alcance para o acesso à informação e o discurso democrático em nível global.

O desafio atual está em aproveitar os benefícios dos avanços tecnológicos enquanto se preserva o papel essencial do jornalismo independente nas sociedades democráticas. Os próximos anos serão cruciais para determinar o futuro da indústria de notícias.

Este artigo é republicado da plataforma The Conversation, sob licença Creative Commons. Leia aqui o artigo original

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Mathias Felipe

Mathias Felipe de Lima Santos (Ph.D.) é professor na Macquarie University. Ele também é pesquisador no Observatório de Mídia Digital e Sociedade (DMSO) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Brasil. Anteriormente, foi pesquisador de pós-doutorado nos projetos Human(e) AI e AI4Media na Universidade de Amsterdã, Joçamda, e pesquisador na Universidade de Navarra, Espanha, no projeto JOLT, uma Marie Skłodowska-Curie. Ele também foi pesquisador visitante na Queensland University of Technology (QUT) na Austrália. Mathias-Felipe é coeditor do livro “Journalism, Data and Technology in Latin America” e do livro em dois volumes “Fact-Checking in the Global South”, ambos pela Palgrave Macmillan. Atualmente, Mathias Felipe faz parte do conselho editorial do periódico Digital Journalism. Seus interesses de pesquisa incluem a natureza em mudança das comunicações impulsionadas por inovações tecnológicas, particularmente em jornalismo, mídia e redes sociais online.

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