De forma participativa, o DataLabe levanta e divulga dados sobre favelas e periferias brasileiras para gerar novas narrativas sobre esses territórios. Nesta entrevista para a série #panorama2024 do *desinformante, Gilberto Vieira, co-fundador da organização, falou sobre como a produção comunitária de dados pode combater a desinformação e mobilizar a busca de soluções para problemas locais. Além de ser co-fundador do data_labe, Vieira é pesquisador associado do Jararaca (jararacalab.org), um grupo de pesquisa em tecnopolíticas urbanas, mestre em Cultura e Territorialidades (UFF) e doutorando em Gestão Urbana (PUCPR), com uma pesquisa sobre a centralidade das periferias urbanas na era da colonialidade dos dados. Leia a seguir a entrevista concedida.
Ana d’Angelo: Como surgiu o data_labe e como ele trabalha hoje pela geração cidadã de dados da periferia?
Gilberto Vieira: O data_labe é uma organização que nasceu num conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, em 2016, com uma necessidade atrelada a uma questão que a gente tinha identificado anos atrás, e que é o propulsor de iniciativas de comunicação nas periferias do Brasil inteiro: o incômodo em como a mídia hegemônica tem retratado as populações que vivem nas favelas.
Mas tinha uma outra camada, que era como disputar essa narrativa sobre as pessoas que vivem nas periferias através de dados. A gente foi entendendo como as grandes bases de dados estavam por trás do modelo de negócio das corporações de tecnologia e como estavam também pautando o modelo de pensamento sobre a nossa sociedade. Nós produzimos dado o tempo todo: “zapeando” nos aplicativos, comprando alguma coisa na internet, ou até quando vamos na farmácia e as pessoas pedem nosso CPF para dar um desconto.
Existe aí um outro lado do trabalho com dados que demanda concentração de capital e uma vigilância contínua sobre a nossa vida. Uma coisa que a gente tem discutido muito aqui no data_labe é esse novo modelo de colonialidade, onde estão explorando cada vez mais as nossas informações, as nossas vidas, os nossos dados, para políticas que não estão garantindo os nossos direitos. A gente viu que podia dar uma [hackeada] nesse negócio e começar a produzir dados sobre a nossa própria realidade, que é o que a gente tem chamado de geração cidadã de dados, uma possibilidade real de saída para a desinformação e as lacunas de informação.
Ana d’Angelo: Sabemos que a desinformação e o discurso de ódio atinge de forma muito mais intensa populações periféricas, negros, mulheres e a comunidade LGBT. Quais são as saídas para esse problema a partir de um trabalho local?
Gilberto Vieira: Não existiam dados, não existia informação suficiente sobre as favelas e periferias para justificar aquela narrativa da violência, da carência, que construíram sobre os nossos territórios e sobre os nossos corpos. Onde estão esses dados? Por que eles não existem? Alguns não existem, mas outros existem e na verdade estão mal articulados, mal divulgados. A gente também entendeu que existem metodologias de coleta de dados diferentes quando a gente está tratando de espaços mais privilegiados das cidades em detrimento desses espaços de favela. Foi aí que o data_labe começou a trabalhar.
Hoje somos uma equipe de 15 pessoas que trabalham com design, jornalismo, pesquisa e estatística para construir narrativas mais poderosas e mais locais, justamente porque a gente está vivendo os problemas mais locais para confrontar essas narrativas mais generalizantes, mais globais sobre as cidades. Cada vez mais as nossas cidades são grandes metrópoles. Muitos municípios, muitos problemas. Existe um desafio gigantesco de gestão das cidades e pensar nas nossas comunidades mais locais, em como a gente se organiza de formas localizadas entre os nossos coletivos, os nossos pares, pode dar respostas efetivas para essa crise da generalização que a gente está vivendo. Aqui no data_labe, entendemos que ações locais e soluções locais podem trazer soluções para problemas globais.
Geração de dados e articulação comunitária
Ana d’Angelo: A partir dessa fundamentação que você traz, pode contar um pouco sobre o projeto Cocozap, como um exemplo do que o data_labe faz na prática?
Gilberto Vieira: O Cocozap surgiu em 2018 como um número de WhatsApp onde moradores, especialmente da Maré, podem fazer denúncias ou queixas de violações de direitos sanitários. Lixão acumulado, esgoto a céu aberto, falta de água, questões de saneamento básico que a gente sabe que existem no Brasil, apesar dos dados oficiais não darem conta do problema. Quando você olha para os dados oficiais do Rio de Janeiro, mais de 90% da população tem acesso ao saneamento básico. A gente foi tentar identificar quais eram os métodos utilizados pelos institutos oficiais de pesquisa para dizer isso sobre uma cidade que tem mais de 20% das pessoas vivendo em favelas. Na medida em que os anos foram passando, construímos uma nova base de dados que pode ajudar os tomadores de decisão, especialmente sobre saneamento básico, a tomar decisões melhores, baseadas nos problemas vividos ali, localmente.
O Cocozap não é só sobre geração de dados, assim, stricto sensu, é também sobre articulação comunitária. A gente começou a ir nas escolas, nos postos de saúde, a trazer a juventude mais engajada nesse tema para espalhar o número de WhatsApp na favela. Como sociedade civil, não temos como resolver o problema na hora que ele está acontecendo, mas podemos, através dos dados, começar a gerar um pouco mais de debate, um pouco mais de incômodo. Com base nos dados coletados no Cocozap, a gente começou a convidar as empresas que cuidam do lixo, da água, para debater junto com os ativistas locais sobre os problemas. Na geração cidadã de dados, a questão central não é só produzir o dado local, é articular, mobilizar as pessoas em torno de um problema através do trabalho com dados. Hoje o Cocozap virou uma metodologia e a nossa ideia é que ele possa ser replicado em muitos outros contextos porque, se você for pensar, ele poderia ser sobre saúde, educação, sobre qualquer problema que a gente identifique numa comunidade local e não tenha lastro nos dados oficiais. É preciso produzir dados locais cada vez mais para confrontar com os dados oficiais e tentar chegar em saídas melhores para soluções da vida prática.
Ana d’Angelo: Queria que você contasse também um pouco sobre a campanha que o data_labe está fazendo relacionada a essa questão dos planos de dados restritos, que limita o uso da internet e contribui para a desinformação.
Gilberto Vieira: Uma pesquisa feita na [favela de] Heliópolis, em São Paulo, há anos atrás perguntava para as pessoas o que elas consideravam internet e muita gente ainda acha que internet é o Facebook e o WhatsApp. Isso acontece por conta de uma manobra que acontece no Brasil e a gente considera completamente ilegal, que é chamada de Zero Rating, onde o usuário tem acesso a uma quantidade limitada de banda de internet. Das milhões de coisas que existem na internet, ele tem um acesso diferente para alguns aplicativos específicos, que são propriedade de corporações específicas – e a gente está falando das big corporações de tecnologia e de informação. No momento em que a gente está vivendo, a internet é um bem, um direito que todo mundo precisa ter, e na favela esse direito não é garantido.
Por isso a gente lançou, junto com a Coalizão Direitos na Rede e junto com o IRIS, uma campanha que se chama Libera Minha Net, para que a gente consiga pelo menos levar para as instâncias públicas um debate mais transparente sobre acesso à internet. Mostrar como as pessoas mais prejudicadas por esse sistema de limitação de internet são as pessoas negras e que vivem nas favelas e nos territórios populares porque elas têm menos dinheiro para pagar grandes pacotes de dados. Esses dois projetos, o Libera Minha Net e o Cocozap, falam muito sobre como o data_labe está trabalhando para produzir dado de forma mais local e também para entender como os dados das grandes corporações são mais ou menos disponíveis para a gente, dependendo da cor da nossa pele ou de onde a gente mora.
Ecossistemas locais de informação e eleições
Paula Campos: A gente tem visto um avanço do discurso da extrema-direita entre os jovens acontecendo nos Estados Unidos, no Brasil e, mais recentemente, na Argentina. Eles estão conseguindo se comunicar com a juventude e articular, mobilizar e informar essa juventude. Para você, qual é o ponto de partida para se comunicar com os jovens?
Gilberto Vieira: Eu acho que a esquerda, em geral, se comunica muito mal ainda. Não vou conseguir dar uma resposta objetiva e nem uma saída para esse problema, mas acho que tem algumas questões que a gente pode olhar. A primeira é identificar que temos um problema de comunicação, de engajamento, justamente com uma camada da população que é cada vez mais importante para a tomada de decisão sobre qualquer coisa. O modelo de comunicação das redes sociais, que é rápido, sintético, conquistou os jovens, obviamente, mas ao mesmo tempo distanciou o jovem dos problemas reais e cotidianos que a gente está vivendo.
O data_labe hoje trabalha basicamente com juventude. Da nossa equipe de 15 pessoas, acho que 10 de nós somos abaixo de 30 anos, negros, LGBTs, moradores de favelas. E o que a gente mais faz é tentar conectar os projetos, os discursos, as falas, as necessidades que a gente tem com as coisas que a gente está vivendo no cotidiano. Tem outra questão, que é trazer essas pessoas para perto. Acho que algumas camadas da população desenvolveram um certo medo: “se eu não conseguir falar a linguagem do jovem, então ferrou”. Mas quem é esse sujeito? A gente tem trazido a juventude cada vez mais para perto, experimentado com linguagem, e isso pode não ser uma saída, mas eu acho que tem funcionado. É preciso experimentar coisas.
Libera Minha Net conseguiu conversar com a juventude porque a gente vive cotidianamente o problema de acesso à internet na favela e a juventude é parte desse problema. Quando o Libera Minha Net começou, a nossa intenção e a dos nossos parceiros era fazer incidência, litigância, chegar nos espaços de poder e dizer para as corporações que a gente precisa de uma internet mais justa, mais acessível. Como eu vou falar disso com uma pessoa que está com um milhão de problemas na cabeça? Não era falando com eles sobre litigância, sobre mudar uma lei que a gente considera ilegal. A gente entendeu que a galera passa constrangimentos cotidianos porque não consegue fazer um PIX, quando o pacote de dados acaba, mesmo tendo dinheiro na conta. E dissemos: “Cara, a gente precisa de um grito de revolta. Libera minha net agora!”. Acho que esse exercício de se aproximar, dialogar, precisa existir.
Ana d’Angelo: Para arrematar, Gilberto, fala um pouco sobre a perspectiva do trabalho de vocês, tendo em vista as eleições de 2024.
Gilberto Vieira: Para mim, eleições saudáveis, principalmente essas eleições municipais, têm a ver com ecossistemas locais de informação. A gente aqui no data_labe tem investido muito num projeto possível, piloto, de fortalecer ecossistemas locais de informação. No Brasil, quase 50% dos municípios são desertos de informação, não têm organizações, veículos de comunicação que cobrem os seus próprios territórios! Os dados oficiais, as informações oficiais, não dão conta das nossas realidades. Para mim, a saída é articular muitos atores diferentes, governo, sociedade civil, corporações, porque a gente precisa se aliar às corporações, inclusive essas de tecnologia e informação, para fortalecer ecossistemas locais de informação. Acho que só aí a gente vai dar conta de checar melhor as informações, de fazer com que as informações sobre eleições, sobre candidaturas, fluam melhor no fluxo gigantesco de produção de comunicação no Brasil. Num país continental como o que a gente vive, com tantas camadas do processo eleitoral, eu acho que só posso apostar nisso e é por esse trabalho que a gente está advogando hoje.