O meio jornalístico ficou intrigado, na semana passada, com a circulação de uma versão não oficial do Meia Hora, jornal muito popular no Rio de Janeiro. Com logomarca e identidade visual idênticas ao do veículo, que é um produto da Editora O Dia, a falsa capa tinha uma foto estilizada do Presidente com a frase “A culpa é do Lula” em letras garrafais. À primeira vista, parecia uma matéria crítica ao Presidente, mesmo com a legenda lateral, que trazia a ironia: “Nada de mamadeira de piroca, nem cartilha gay, nem auxílio-prostituta (…) Pô, Presidente, qual é?”.
Em texto no site do jornal O Dia, a empresa informou que o material se tratava de um “panfleto apócrifo de entidade de classes com conteúdo político”, com tiragem de “5 mil exemplares no estado do Rio de Janeiro”. O Grupo O Dia acusa a mencionada entidade de “crime de pirataria”, enquadrado como “crime contra o direito autoral” e fala em “forma obscura” de produção e distribuição. O objetivo da ação seria, segundo uma pessoa ouvida pela empresa, uma forma de “furar a bolha da esquerda” com um panfleto político favorável ao Presidente.
A ação do Grupo O Dia em defesa de seus direitos de propriedade intelectual não é algo raro no jornalismo profissional. Muitas pessoas devem lembrar do blog Falha de São Paulo que, com logomarca e identidade visual idênticas às da Folha de São Paulo, fez sucesso satirizando matérias reais do jornal. Após anos de processo na Justiça, o STJ decidiu, em 2017, que não houve violação do direito de marca nem concorrência desleal, e autorizou o site a voltar ao ar, depois de 7 anos inativo. Os criadores optaram por reabrir as atividades com perfis no Twitter e no Instagram.
O caso do Falha de São Paulo ocorreu poucos anos antes do boom do fenômeno desinformativo que assola o Brasil. O blog fez sucesso rápido, circulando nas redes no ano da primeira corrida eleitoral pós-massificação das redes sociais, em 2010, e antecedeu o caos desinformativo que emergiu a partir de 2013, quando as marcas jornalísticas – fakes e reais – passaram a ser muito mais difundidas online. No caso do Meia Hora, a edição falsa circulou no formato impresso e, quando chegou às redes, já era retratado como uma intrigante fake news.
Misturar logomarcas, tirar do contexto, suprimir falas: estratégias da desinformação
Mas o impacto de layouts que mimetizam veículos tradicionais já causou muito mais estragos. No primeiro semestre deste ano, quando circularam mensagens sobre supostos futuros ataques a escolas, uma das imagens mais difundidas foi um printscreen do site G7, que imita cores e logomarca do G1, o portal de notícias do Grupo Globo. Essa prática não é comum só no Brasil. Nos EUA, que tem um cenário desinformacional não tão diferente do brasileiro, o The Washington Times confunde leitores com a mistura de nomes e logomarcas do The Washington Post e The New York Times, e costuma difundir desinformação sobre pautas do momento, como vacinação e Covid-19.
Quando se olha apenas para casos emblemáticos como os descritos acima, o problema do uso de marcas jornalísticas consolidadas para dar credibilidade a diferentes tipos de fake news(incluindo sátira, desinformação e informação maliciosa) parece menor do que realmente é. Embora passem quase despercebidas pelo grande público, um acompanhamento de fake news políticas em redes sociais, realizado desde março de 2023 pelo Núcleo da Integridade da Informação (NII) da Agência Nova, mostra que é recorrente a replicação quase integral de conteúdo de veículos como Folha de São Paulo, Estadão, O Globo, Correio Braziliense, UOL, O Antagonista e Poder 360, entre outros, em publicações classificadas como falsas, exageradas ou descontextualizadas. Em alguns casos, o texto é reproduzido na íntegra, mas com título sensacionalista, ou mesmo mentiroso. Em outros, parágrafos inteiros da matéria original são retirados para prescindir do “outro lado da história”, apresentando apenas argumentos negativos ou desabonadores.
Os exemplos abundam nas redes. Um dos portais que mais utiliza conteúdo protegido por direitos autorais de sites jornalísticos é o Terra Brasil Notícias. Em um dos casos, em 11/06/2023, o site replicou matéria da Folha quase na íntegra. E nem foi preciso reescrever o título, já bastante chamativo: “Frigoríficos perderam R$ 40 bi na bolsa e churrasquinho de picanha fica distante”. Mas uma pequena alteração foi feita em relação ao texto original: para omitir o cenário atual mais positivo, a frase “Hoje, o preço da carne está em queda. Mas, nos últimos dois anos, com o preço da carne bovina nas alturas…” foi substituída por “Com o preço da carne nas alturas…”.
A prática de realizar pequenas ou grande mudanças – principalmente nos títulos – é frequente. Outros exemplos foram protagonizados por Conexão Política, copiando trecho de O Globo; Terra Brasil Notícias, replicando textos alterados da Folha; e Diário do Brasil, Revista Oeste e Terra Brasil Notícias, também com texto original da Folha.
Em outro exemplo, mais uma vez replicado pelo Terra Brasil Notícias, trechos da matéria da Folha, de 11/07, com o título “Ataques a tiros na terra yanomami deixa uma criança morta” foram reescritos, resultando em um típico caso em que o “copia, mas não faz igual” mal consegue disfarçar o crime autoral. Dentre as principais diferenças entre os dois textos está a exclusão de parágrafos inteiros que mencionavam Jair Bolsonaro nominalmente, ao apontar o aumento do garimpo ilegal na região Amazônica em 2022. Outros trechos que retratavam a solidariedade de Lula com os povos atacados e as ações do Ministério dos Povos Indígenas na região também foram suprimidos. O título do texto copiado foi alterado para dar protagonismo ao governo federal, com um viés negativo: “Criança indígena Yanomami é morta a tiros em ataque em área onde o Governo atua”.
No caso da matéria do Estadão “Amazônia e Cerrado registram em junho o maior número de queimadas desde 2007”, publicada em 03/07 e replicada no dia seguinte pelo site Gazeta Brasil, o trecho eliminado na cópia mencionava uma tendência positiva no governo atual em relação ao anterior: “o primeiro semestre de 2022 teve um aumento de 17% em relação ao mesmo período do ano anterior. Desta vez, apesar do novo crescimento, há uma desaceleração da escalada dos focos de incêndio”. Na réplica da mesma matéria do Estadão no Terra Brasil Notícias, mantém-se a informação de que “apesar do novo crescimento, há uma desaceleração da escalada dos focos de incêndio” e a assinatura do texto é sincera: lê-se “Estadão”. O mesmo ocorre nos créditos da foto, com o nome do fotógrafo e a referência à agência Reuters.
Medidas regulatórias para interromper a circulação de jornalismo fake
Apesar da enorme profusão de marcas jornalísticas em plataformas de redes sociais (facilitando a circulação de casos como os descritos aqui), o avanço de tecnologias baseadas em IA na última década já oferecem soluções relativamente acessíveis para frear esse uso abusivo de logomarca e identidade visual de veículos jornalísticos, e a exploração criminosa de sua credibilidade acumulada. Assim como os sistemas de recomendação das plataformas conseguem identificar conteúdos semelhantes aos que os usuários já demonstraram interesse e sites como Youtube bloqueiam automaticamente vídeos que contêm conteúdo protegido por direito autoral, os algoritmos das plataformas também poderiam ser aplicados para brecar a circulação da textos jornalísticos replicados dos grandes canais de imprensa na Internet.
O Projeto de Lei 2370/2019, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, prevê a remuneração de conteúdo jornalístico profissional por parte das plataformas digitais, a exemplo do que já ocorre em países como Austrália e Canadá. O objetivo é tornar o modelo mais sustentável para as empresas jornalísticas que veem seu trabalho gerar lucros para as plataformas digitais sem que haja qualquer remuneração por isso. Com um modelo de publicidade que vincula anúncios em resposta a buscas relacionadas com as notícias, as plataformas de redes sociais podem acabar amplificando a apropriação indevida de conteúdo protegido por direito autoral, ao remunerar não apenas sites de notícias de falsas, mas também aqueles que replicam, na íntegra, o conteúdo de grandes veículos de imprensa, ficando com os bônus, enquanto o jornalismo profissional tem o ônus exclusivo da produção.