Não há constrangimento no racista em ser racista. Não há constrangimento algum. Foi o esse o pensamento que tive todas as vezes em que repetidamente assisti às cenas do jogador Vinicius Jr. sendo xingado, indo à torcida identificar os criminosos que imitavam macacos, sofrendo um golpe de mata-leão por parte de outro jogador e, por fim, saindo do campo expulso, como algoz. De vítima a culpado em questão de minutos. Como é possível não haver constrangimento? Como é possível alguém se achar no direito de peitar a vítima, como um racista fez enquanto discutiu com o jogador da arquibancada, e sair ileso? 

O autoplay das redes sociais me fez assistir a essas cenas repetidamente. Uma dor dilacerante me cortou por dentro toda vez que vi Vinicius Jr. reivindicar por justiça. Reivindicar por sua humanidade, para que punissem quem tentava diminuir o que há de mais precioso, sua raça.

A violenta sequência a qual o jogador de 22 anos foi exposto durante uma partida entre o Real Madrid e o Valencia, no domingo (21), é uma demonstração de como ser racista é tão natural para aquelas pessoas que xingam e destilam ódio contra Vinicius Jr. dentro e fora de campo que não há um mísero receio de ter o rosto reconhecido nas centenas de imagens feitas durante as ocasiões em que crimes foram praticados e que, portanto, as tornariam passíveis de serem responsabilizadas. 

Não há receio porque não há constrangimento. E muito menos punição. Em um vídeo divulgado na tarde desta segunda (22), Vinicius Jr. reuniu um compilado de situações recentes onde é possível ver momentos em que o xingaram de forma criminosa, desejaram sua morte, simularam seu enforcamento com um boneco pendurado sob uma ponte. Ao final, ele escreve: “Racismo é crime. Não punir é ser criminoso”. 

“Agora pergunto: quantos desses racistas tiveram nomes e fotos expostos em sites? Eu respondo pra facilitar: zero. Nenhum pra contar uma história triste ou pedir aquelas falsas desculpas públicas. O que falta para criminalizarem essas pessoas? E punirem esportivamente os clubes? Por que os patrocinadores não cobram a La Liga? As televisões não se incomodam de transmitir essa barbárie a cada fim de semana?”, desabafou o jogador.

No dia 23 de março, a torcida do Barcelona gritou em alto e bom som  “Morra Vinicius”. Nada foi feito de lá pra cá. A desumanização de pessoas negras é um projeto, não é cometida em vão. “Em uma sociedade que se apresenta como globalizada, multicultural e constituída de mercados livres, ‘o racismo já não ousa se apresentar sem disfarces’, escreveu o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, em seu livro “Racismo estrutural”, publicado pela coleção Feminismos Plurais.

Animalizar Vinicius Jr., um fenômeno do futebol mundial com apenas 22 anos, é parte de uma estratégia muito bem arquitetada e uma das facetas mais cruéis do racismo. Associam-o a um macaco, mostram detalhadamente como ele deveria ser enforcado e morto, e destilam ódio nas redes sociais, nos campos, nas ruas e em todos os espaços que vão garantir o mínimo de visibilidade a essas pessoas que buscam louros pelas suas criminosas performances.

O filósofo David Livingstone Smith, autor de duas monografias sobre desumanização, argumenta que quando as pessoas se referem aos outros como subumanos, eles não estão falando metaforicamente ou estrategicamente, mas literalmente vêem certas pessoas como outras espécies tentando se passar por humanos. “A desumanização é uma resposta psicológica às forças políticas, enraizada em nossa propensão para o pensamento hierárquico, que nos permite desativar nossas inibições, muitas vezes com consequências catastróficas”, escreveu. 

Discurso de ódio e morte simbólica

Pesquisador de discursos de ódio nas redes sociais e representação de minorias étnicas em meios de comunicação de massa, o professor Luiz Valério Trindade caracteria discurso de ódio como “manifestações de pensamentos, valores e ideologoias que visam inferiorizar, desacreditar e humilhar uma pessoa ou um grupo social, em função de características como raça, gênero, orientação sexual, filiação religiosa, lugar de origem ou classe. Ao tratar o jogador de 22 anos como um ser inferior que não deveria estar ali, trajando uma camisa do Real Madrid e defendendo um dos maiores clubes do futebol do mundo, os racistas tentam a todo o custo desacreditar e diminuir a relevância do atleta. Tentam, a todo custo, e de forma deliberada, uma morte simbólica de Vinicius.  

Em fevereiro deste ano, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania anunciou a criação de um grupo de trabalho para combater discurso de ódio e extremismo.”Precisamos discutir quais elementos constituem esse ódio que se pronuncia a partir de discursos que estão sendo naturalizados no ambiente público, principalmente nas chamadas redes sociais, onde certos grupos se sentem absolutamente à vontade para destilar o ódio e reforçar preconceitos. Esses discursos que pregam ódio, discursos fascistas, inspirados em experiências históricas de destruição, como o nazismo, não estão dentro daquilo que a gente chama de democracia e de liberdade de expressão. Eles têm que ser fortemente combatidos, não podem chegar ao coração das pessoas”, afirmou o ministro Silvio Almeida. 

Lembro de uma vez ter lido sobre o impacto de situações violentas de racismo em outras pessoas negras que presenciam a ação ou leem/veem sobre. Infelizmente varri minhas referências e não encontrei o estudo. Na época, me chamou atenção o adoecimento que ocorre como efeito dominó. É impossível você, enquanto pessoa negra, ver conteúdos extremamente violentos e não sentir, não adoecer. Tento não assistir a vídeos de pessoas negras sendo brutalmente assassinadas em operações policiais, em atitudes truculentas dentro de supermercados ou em situações do tipo. Me dói, me mata. Mas o autoplay das redes sociais que lucram com o ódio não nos permite ficar distante de tanta violência. Não nos permite um distanciamento, um respiro. Quer nos levar junto para esse mar de dor.

Quando a jornalista Glória Maria disse que “nada blinda preto de racismo, você tem que aprender a se blindar da dor”, em entrevista ao programa Roda Viva, lembro de ficar pensativa por semanas, sobre como de fato seria possível colocar em prática o que ela propõe. Como é possível se blindar? Até porque, como bem disse Silvio Almeida “ao contrário do que apregoam as leituras liberais, racismo não é apenas um problema ético, uma categoria jurídica ou um dado psicológico. Racismo é uma relação social, que se estrutura política e economicamente”. Tem gente lucrando com isso. Tem quem lucre com nosso adoecimento físico, mental e espiritual.

Glória trouxe como técnica central, para além de terapia, deixar que o racista se resolva com o seu racismo, com a sua dor e com a sua amargura. Me pergunto a todo tempo como acordou Vinicius Jr. hoje, depois de uma carga tão grande de ódio.

Vi que ele foi muito acolhido por seus pares. Por atletas, familiares, políticos e, principalmente, personalidades negras do esporte que vivenciam ou vivenciaram situações de horror semelhantes. O aquilombamento proposto pela historiadora Beatriz Nascimento, em que pessoas negras se unem enquanto estratégia de resistência e coletividade, é uma ferramenta importante em momentos como este, para que mulheres e homens negros se fortaleçam enquanto sujeitos.

Em “Afropessimismo”, o escritor Frank Wilderson aborda de que forma a discriminação racial impacta negativamente a própria crença do sujeito na real possibilidade tangível de mudança social. Ele fala principalmente sobre a falta de humanidade a que são submetidas as pessoas negras. Wilderson faz uma análise sobre como esse tratamento dado ao negro como não-humano, pensando enquanto categoria analítica, pode não ser capaz de resgatar o negro de um estado de profunda melancolia. Triste isso, né? Doído também.

O advogado e professor Thiago Amparo teve uma leitura “afro-otimista” da obra de Wilderson e clama por um dia em que “nossa existência seja como as belas pinturas de Calida Garcia Rawles, de pessoas negras flutuando na água em estado de calma”. 

“Reivindicar a humanidade que se nega a alguns corpos e não a outros é uma forma de crer que seja possível tecer um mundo onde tal humanidade exista. É urgente construir um mundo onde possamos escrever sobre transcender nossa dor, senão a ela seremos reduzidos”, escreveu Amparo.