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Pontos de vista

acervo pessoal

jan 31, 2022 | pontos de vista

Qual a origem e por que o jornalismo de dados e a transparência são importantes

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O jornalismo é uma prática social assentada sobre a realidade. Investiga os acontecimentos de interesse público para acessar o que chamamos de verdade verificável sobre fatos ainda em desenvolvimento. Esses fatos são aferidos por meio de técnicas de apuração, isto é, quando o repórter faz pesquisas em documentos e bases de dados e entrevista autoridades e especialistas sobre um tema. Ao fazer essa mediação entre os acontecimentos e o público, o jornalista reconstitui o fato digno de nota, fazendo com que a notícia ofereça um relato ancorado na realidade. 

O Jornalismo Guiado por Dados – ou somente Jornalismo de Dados – é, antes de tudo e sobretudo, jornalismo. Por isso, está amparado sobre essas mesmas bases, tendo como norte o compromisso ético com a verdade. A diferença é que o Jornalismo de Dados costuma trabalhar com um conteúdo durável, inspirado no método científico, em vez de priorizar notícias de última hora. A escolha das fontes e o processo de verificação é o que assegura a veracidade das informações e a qualidade do texto. Ao jornalismo, afinal, não cabe apenas informar, mas informar de modo qualificado

No final da década de 1960, o repórter Philip Meyer desenvolveu, nos Estados Unidos, o que chamou de Jornalismo de Precisão. Buscava, em resumo, incorporar parâmetros da pesquisa científica à prática da reportagem, a exemplo do teste de hipóteses. A inclinação à ciência era uma resposta ao New Journalism, que tentava aproximar o jornalismo da literatura. O Jornalismo de Precisão viria a dar origem à Reportagem Assistida por Computador (RAC) e ao que hoje conhecemos como Jornalismo Guiado por Dados. 

Durante a pandemia de Covid-19, a cobertura de ciência e saúde, aliada ao uso de dados e estatísticas, destacou-se para auxiliar a compreender o desenvolvimento da doença no Brasil e no mundo. Número de casos, mortes, e termos como “achatar a curva” e “média móvel” passaram a aparecer com mais frequência no vocabulário noticioso. Até mesmo as limitações dos dados, especialmente no começo da pandemia, surgiram na cobertura. 

Números do Digital News Report sugerem que a confiança nas notícias cresceu no Brasil durante a pandemia, quando ganhou fôlego o reconhecimento do jornalismo como uma instituição credível. Como sabemos, a crise de saúde pública abriu margem para a completa desordem do cenário informativo, altamente poluído pela circulação de conteúdo fabricado e toda sorte de conselhos.  

Existem muitas formas de combater a desinformação. Uma delas é justamente priorizar a maior confiança da audiência em fontes qualificadas, como o próprio jornalismo. A transparência – que em seguida será discutida conceitualmente – é uma das vias para ampliar a credibilidade percebida, como indica este estudo de Johnson e St. John. No contexto em que a transparência pública é esperada das instituições sociais, o próprio jornalismo, como uma dessas instituições, se esforça para mostrar aos leitores como as notícias são feitas. 

Neste sentido, o Jornalismo Guiado por Dados apresenta algumas vantagens. Devido à proximidade com a ciência, apresenta um método bem definido, que pode ser comunicado à audiência. Isso inclui a abertura de documentos, fontes de dados e código-fonte utilizado na análise, disponibilizando, respectivamente, os arquivos que embasaram a apuração, o hiperlink que remete à origem da informação e o acesso ao repositório que organiza o código. Na Web, não há limite para o uso de hiperlinks e outras ferramentas para o aprofundamento da informação. 

Em entrevistas concedidas por jornalistas de dados no Brasil e na Alemanha, a transparência aparece discursivamente como um valor fundamental neste tipo de prática. No caso brasileiro, é descrito pelos profissionais como um modo de ampliar a credibilidade, de mostrar as evidências de um fato e combater a desinformação. Esses estudos dão pistas para mostrar que existe aderência à transparência como operadora de uma prática ética, pertencente ao ethos deste grupo. Contudo, nem sempre a transparência jornalística é encarada como característica fundamental pelos veículos de comunicação, que por vezes evocam este valor apenas como recurso discursivo de legitimação, conforme discuto em minha tese de doutorado. 

É preciso considerar, então, que uma reportagem não simplesmente existe no mundo – ela está inserida em um contexto mais amplo. Defino a transparência como o processo de abertura de informações da organização jornalística e dos processos por ela desenvolvidos. Inclui, por exemplo, aspectos estruturais como a clareza nas fontes de financiamento, na política de diversidade e na correção de erros. Em termos operacionais, diz respeito principalmente ao método adotado e às fontes utilizadas. 

No Brasil, os nativos digitais – sites jornalísticos que nasceram na Web e não derivam de uma versão impressa – são os que mostram menos amarras para abrir seus processos. Destaco iniciativas como o Núcleo, a Agência Pública, o Nexo e a Piauí. O Nexo, por exemplo, integra o Projeto Credibilidade (Trust Project), que segue uma lista de princípios em nome da abertura dos processos. A chamada imprensa de referência também busca fazer sua parte por outras vias, instaurando projetos como o Fluência em Notícias, de GaúchaZH. 

O emprego de dados com a devida contextualização corresponde à demonstração de evidências para examinar aspectos da realidade. A evidência está situada na ordem da racionalidade, e é capaz de gerar um argumento que pode ser provado verdadeiro, construído com base na lógica. Enquanto uma opinião é baseada em uma crença, um argumento está ancorado na realidade dos fatos, naquilo que pode ser provado. Trata-se, de novo, pela busca da verdade, como bem evidenciado por Carnielli e Epstein no livro Pensamento crítico: o poder da lógica e da argumentação

Refletir sobre a origem de um conteúdo usando a lógica configura o principal ponto de partida para fazer prosperar o combate à desinformação. É provável que uma sociedade mais crítica e menos apressada seja capaz de reduzir o compartilhamento de conteúdo fabricado. Este estudo da psicologia mostra, por exemplo, que um “cutucão” (nudge) é suficiente para fazer com que alguém repense sua conduta, nem sempre proposital – mas certamente desatenta – para repassar mensagens sem antes verificar. 

O conteúdo derivado de práticas confiáveis, como o Jornalismo de Dados e o Fact-checking, que também evidencia a importância da transparência metodológica, podem servir como este nudge para minimizar o espalhamento de conteúdo fabricado. O jornalismo não é perfeito e erra muitas vezes, principalmente quando usa os mesmos mecanismos que contribuem para a viralização de um conteúdo, a começar pelo uso de clickbait em manchetes e títulos sensacionalistas. Via de regra, porém, é um antídoto bastante útil à medida que chama a atenção para discussões sociais relevantes. 

Dizem que chegar a um ponto de convergência é o melhor modo de dialogar com pessoas que acreditam em desinformação e teorias da conspiração. Um bom começo é entender a relevância de práticas sociais qualificadas e o papel social do jornalismo, aqui incluído o Jornalismo Guiado por Dados, como uma espécie de serviço público para a manutenção de uma democracia forte e saudável

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Marília Gehrke

Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde defendeu a tese intitulada “Os elementos de transparência no Jornalismo Guiado por Dados” em dezembro de 2021. É co-autora do guia hipermídia “Postar ou Não?”, uma publicação de media literacy para combater a desinformação. Em 2022, se une aos pesquisadores do projeto Trust and News Authenticity no Centro de Democracia Digital (DDC) da Universidade do Sul da Dinamarca (SDU).

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