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set 11, 2021 | pontos de vista

Fake news como legitimação do racismo: o caso Marielle Franco

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Atingida por quatro tiros na cabeça, a vereadora carioca Marielle Franco foi brutalmente assassinada em 14 de março de 2018 em uma emboscada ainda sem solução. Imediatamente após a sua morte física tentaram lhe tirar a memória e a honra com uma série de publicações falsas criadas com o intuito de diminuir a comoção pública pelo seu assassinato. Os conteúdos criados com ataques diretos a sua moral até hoje afetam seus familiares, que seguem recebendo uma série de agressões verbais e até físicas que têm como base argumentos falsos minuciosamente construídos no decorrer dos últimos três anos.

A narrativa mentirosa criada sobre Marielle Franco, que ainda percorre as redes sociais, repetidamente afirma que ela não era “santa” e, portanto,  não era digna de toda a atenção que estava tendo por parte da sociedade, porque “cavou a própria cova” e “teve o que mereceu”. Por ser uma ativista feminista negra, defensora de direitos humanos, houve quem divulgasse que Marielle “foi morta pelos bandidos que defendia” e que, por isso, “provou do próprio veneno” – usando aqui alguns dos termos retirados de mensagens reais direcionadas a ela.

A desumanização que ocorreu com Marielle Franco não é nova e também não estacionou no ano de sua morte. Em junho de 2018, Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, foi morto usando seu uniforme escolar durante uma operação da Polícia Civil no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Em abril de 2019, o músico Evaldo Rosa dos Santos teve o carro fuzilado durante uma operação do Exército, em Guadalupe, no Rio de Janeiro. Dos 257 tiros de fuzil e pistola disparados contra o carro da família de Evaldo, nove atingiram o músico. Em maio de 2020, o menino João Pedro, de 14 anos, foi morto dentro de casa durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.

Todas essas pessoas eram negras. Ninguém dessa lista morreu só uma vez. Todas foram duas vezes vítimas: primeiro da violência do Estado; e, no momento seguinte, de uma violência simbólica igualmente grave. Marielle, Marcos Vinicius, Evaldo e João Pedro foram alvos de fake news que viralizaram assim que os casos ganharam dimensão nacional. A estratégia foi semelhante em todos os casos: fotos enganosas, de pessoas parecidas ou imagens manipuladas, foram utilizadas para criminalizar as vítimas como forma de justificar a violência e diminuir a comoção pelos assassinatos.

Um caso mais recente, de uma pessoa que teve sua reputação ferida em vida, também remete ao mesmo tipo de situação. Adriana Santana de Araújo, mãe de Marlon Araújo – um dos mortos em uma operação policial que aconteceu em Jacarezinho em maio deste ano – foi apontada como protagonista de um vídeo em que uma mulher aparece dançando com um fuzil na mão. O vídeo teve ampla circulação e Adriana recebeu uma série de ameaças, passando a tomar quatro remédios controlados por dia para lidar com o impacto psicológico das agressões verbais.

Mentiras circulam mais rápido

São mães e pais, viúvas, filhos e pessoas próximas às vítimas que mal puderam processar o luto, pois precisaram lutar pela memória do parente perdido ou até mesmo da própria, como no caso de Adriana. E, cabe lembrar, a verdade dificilmente percorre o mesmo caminho da mentira e não tem a mesma velocidade: as mentiras circulam seis vezes mais rápido, segundo pesquisa do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês). Discurso de ódio e desinformação caminham lado a lado e se retroalimentam.

A desinformação usa narrativas que confundem e ajudam a reforçar crenças e preconceitos, sendo que muitas delas são construídas a partir de discursos odiosos que tentam justificar a morte e a brutalidade do assassinato de pessoas pobres e negras, na maioria das vezes, criminalizando a vítima, como se, ao desacreditá-las, isso justificasse seus assassinatos. “Fake news são tiros dirigidos para alvos (…) São tiros de ficção, mas não são tiros de festim, pois visam efeitos de real e fazem parte inseparável de uma cultura da violência, em um mundo arquitetado com armas e balas”, afirmou o músico e professor José Miguel Wisnik, citando o caso de Marielle Franco.

A criação e a viralização desses boatos ganharam impulso por reforçar outras tantas mentiras que durante séculos foram construídas sobre a população negra para normalizar práticas racistas. Pesquisadora da Universidade da Pensilvânia, Kimberly Grambo explica que “notícias falsas que retratam de forma negativa um grupo étnico, racial ou religioso têm o poder de imputar uma ‘criminalidade terrível’, desumanizando os indivíduos desses grupos”. O filósofo David Livingstone Smith argumenta que quando as pessoas se referem umas às outras como subumanos não há uma tentativa de qualquer construção metafórica, mas, literalmente, elas enxergam certas pessoas como outras espécies tentando se passar por humanos. A desumanização seria, portanto, uma “resposta psicológica às forças políticas”, enraizada em nossa propensão para o pensamento hierárquico.

A pesquisadora Susan Benesch chama de discurso perigoso toda forma de expressão – seja texto, vídeo ou imagens – que possa aumentar a intolerância e a possibilidade de que pessoas participem de atos de violência contra membros de outros grupos sociais. Fundadora do Dangerous Speech Project, Susan observa que a desumanização – uma forma de se referir aos alvos dos xingamentos e ameaças como “insetos, animais desprezados, bactérias ou até câncer”- ocorre porque essa ação pode fazer a violência parecer aceitável. “Se as pessoas parecem baratas ou micróbios, não há problema em se livrar delas”, observa a especialista. Marielle está sendo alvo de conteúdos que ferem a sua honra até os dias atuais.

A forma misógina e racista com a qual se referem à ex-vereadora acompanhou a evolução nas formas de comunicação nas redes sociais. Há, inclusive, figurinhas que tratam da sua morte com um deboche desprezível. O uso de imagens de pessoas negras para articular narrativas falsas contra pautas afirmativas se articula com o que vem acontecendo com Marielle. Qual a função das plataformas digitais na distribuição desse tipo de conteúdo? Para o pesquisador Luiz Valério Trindade, as desigualdades sociais e raciais se perpetuam no Brasil e as redes sociais representam a arena contemporânea para a construção, disseminação e reforço de tais valores distorcidos, ou uma espécie de “pelourinho moderno”.

O autor chama atenção para o fato de que corremos o risco de a sociedade perder a capacidade de se indignar perante desigualdades raciais, já que os discursos de cunho racistas se tornam amplamente difundidos, naturalizados e reforçados. Neste momento é fundamental buscarmos novas formas de criarmos contra narrativas e garantir a punição dos grupos responsáveis por tais práticas para que a população negra não ocupe mais um espaço de racismo e criminalização. Como disse Sueli Carneiro, em entrevista recente ao jornal O Globo, “a violência racial que sofremos nos impulsiona a sermos agentes civilizatórios do Brasil, na medida em que, incansavelmente,  advogamos por valores e princípios radicalmente democráticos que possam não apenas nos libertar da opressão racial, mas também redimir e reconciliar esse país com a sua própria história.”

 

Referências

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Gabriela de Almeida Pereira

Jornalista e mestranda em Direitos Humanos e Cidadania na Universidade de Brasília (UNB).

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