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Pontos de vista

acervo pessoal

nov 16, 2022 | pontos de vista

A luta negra, indígena e quilombola no centro da agenda de mudanças climáticas

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Acontece agora em novembro a 27ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas (COP27). Lideranças globais, chefes de Estado, ativistas, militantes, empresas e seus lobistas, todos se encontram na cidade de Sharm El-Sheik no Egito para debater o futuro das próximas gerações.

Para o movimento negro e quilombola essa COP é um marco histórico. Pela primeira vez tivemos um número recorde de participantes de integrantes do movimento negro e quilombola no encontro. Essa amplitude de participação é fundamental para romper com uma grande ausência nos debates sobre mudanças climáticas: o racismo ambiental.

Para compreender a real dimensão das injustiças climáticas e dos impactos da crise ambiental global que vivemos é fundamental centralizar o lugar que ocupa o racismo nessa agenda. Para tanto há de se considerar o histórico das colonizações e do estabelecimento de um sistema econômico estruturado na exploração de corpos negros e que necessita pra sua sobrevivência da manutenção de hierarquias raciais.

O legado racista e colonial é determinante para a crise ecológica global que vivemos. Além disso, ainda que sejamos todas e todos impactados pelas mudanças climáticas, estudos e relatórios especializados apontam que essa crise e as injustiças climáticas delas provenientes atinge de maneira desproporcional grupos sistematicamente marginalizados – como a população negra, quilombola e indígena.

O racismo ambiental é termo que define a ação institucionalizada, fundada no racismo estrutural, que determina políticas, diretrizes e práticas que possam impactar indivíduos e comunidades em decorrência de sua raça – independentemente de ser intencional ou não. Robert Bullard, precursor do conceito de justiça ambiental, nos ensina que nenhum “desastre ecológico” é natural, todos têm procedência, todos são construídos e todos poderiam ser evitados. Não é por coincidência que as vítimas de “acidentes” ambientais são em sua maioria de grupos socialmente marginalizados e racializados.

Nas palavras de Dulce Pereira, uma das maiores especialistas do Brasil na agenda ambiental, “o racismo ambiental é uma das formas de materialização do racismo estrutural […] Trata-se do exercício do poder por meio da retirada de direitos de grupos humanos nos territórios que ocupam. Comunidades são vulnerabilizadas, deslocadas, expulsas, submetidas a condições insalubres. Moradores são assassinados, subjugados por violência, com base em sua origem étnica. Esta forma de racismo é operada, por exemplo, por meio de legislação e aplicação da lei, constrangimentos, exposição a resíduos tóxicos, venenos e poluentes, depreciação dos conhecimentos ancestrais e desqualificação dos valores consolidados através das gerações, para interagir nos territórios. Trata-se de epistemicídio e é um processo histórico”[1].

A Relatora Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância da ONU, Tendayi Achiume, apresentou em outubro deste ano um relatório profundo sobre a crise ecológica, justiça climática e justiça racial[2]. Neste documento apresentado à Assembleia Geral da ONU, a relatora aponta a existência de “zonas de sacrifício raciais” para caracterizar como se opera o racismo ambiental. “Zonas de Sacrifício” é uma terminologia adotada por ambientalistas durante o período de guerra fria para definir os territórios que foram afetados por ações nucleares e por isso eram dotados de um nível muito grande de insalubridade para a existência humana. A relatora da ONU aponta que as mudanças climáticas estão impulsionando a proliferação de zonas de sacrifício e que elas são – em sua maioria – racializadas.

Uma “zona de sacrifício racial” implica em lugares onde pessoas e comunidades sofrem grandes consequências para a sua saúde física e mental, além de estarem mais sujeitas à potenciais violações de direitos humanos, por serem zonas com grande índice de poluição, que estão contaminadas ou que estão mais sujeitas à “desastres” e “acidentes” ambientais. No contexto brasileiro, a Relatora Tendayi Achiume aponta como essas zonas se concentram em comunidades indígenas e quilombolas: “Na Amazônia e em outros lugares da América do Sul, os defensores dos direitos humanos ambientais indígenas são frequentemente perseguidos por protestar contra projetos industriais que destroem suas terras natais. Em vários casos, protetores ambientais foram ameaçados ou assassinados por sua defesa. Ao mesmo tempo, a perturbação ambiental causada por megaprojetos de desenvolvimento no Brasil, por exemplo, ameaça comunidades quilombolas e indígenas há muito tempo”[3].

A consideração do racismo ambiental nos processos de negociação que ocorrem na COP27 é uma das principais demandas que o movimento negro brasileiro leva ao Egito. Carta apresentada pela Coalizão Negra por Direitos, articulação nacional de mais de 250 coletivos e organizações do movimento negro no país, ao próximo governo durante a COP, estabelece uma série de reivindicações na agenda do meio ambiente, dentre elas a necessidade de dar efetividade ao Plano Nacional de Adaptação e a eliminação das desigualdades raciais, étnicas, de gênero e geracional, de aprovar as Metas e Objetivos Globais de Adaptação, de efetivar os Mecanismos de Financiamento de Adaptação, e de aprovar os Mecanismos de Financiamento das Perdas e Danos.

Não há como falar de justiça ambiental sem tratar da justiça racial. Que possamos avançar ainda mais nesse debate e que o racismo ambiental se firme como uma agenda transversal no âmbito das próximas COPs.


[1] Dulce Pereira: “Racismo Ambiental: uma das materializações do racismo estrutural”. Disponivel em https://congressoemfoco.uol.com.br/blogs-e-opiniao/colunistas/2-racismo-ambiental-uma-das-materializacoes-do-racismo-estrutural/

[2] A/77/2990: Report of the Special Rapporteur on contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance on ecological crisis climate justice and racial justice – Note by the Secretary-General – https://www.ohchr.org/en/documents/thematic-reports/a772990-report-special-rapporteur-contemporary-forms-racism-racial

[3] Ibidem,

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Sheila de Carvalho

Advogada de Direitos Humanos, diretora de incidência política do Instituto de Referência Negra Peregum, integrante da Uneafro Brasil, Coalizão Negra por Direitos e Grupo Prerrogativas. Fellow do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU.

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