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Viena Filmes

jun 10, 2024 | Pontos de Vista

IA para fazer arte ou lavar a louça?

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Como uma boa viciada em documentários, corri para ver o mais novo da Globoplay sobre o voo 447, que saiu do Rio de Janeiro rumo à Paris e desapareceu no oceano Atlântico. A produção do doc é ótima e me emocionei bastante com entrevistas de alguns familiares, mas esse ponto de vista não é sobre isso. Um ponto me chamou a atenção ainda nos primeiros segundos do primeiro episódio e não me fez sossegar até escrever esse texto. 

É que a primeira tela que aparece quando você aperta o play do filme é essa daqui:

Isso mesmo. A dublagem dos entrevistados estrangeiros foi feita com inteligência artificial. Posso ser ingênua com o meu choque, mas não tenho conhecimento de outro produto nacional realizado dessa forma e fico temerosa com o precedente que isso pode abrir.

Ao longo da série fica nítida a diferença que faz um dublador profissional – e olhe que eu estou bem longe de ser alguma crítica de cinema. A entonação não corresponde ao sentimento dos entrevistados e as vozes variam em alguns pontos. Outro ponto a se destacar é a própria falta de padrão, visto que alguns entrevistados (sabiamente) se recusaram a serem dublados por IA e tiveram suas falas legendadas. 

Além das questões puramente técnicas, é preciso compreender esse movimento e o impacto que isso pode causar – ou já está causando – na cultura e nas artes. No ano passado, atores e roteiristas de Hollywood fizeram uma greve de quatro meses para garantir, entre outras questões, a proteção contra o uso de inteligência artificial, com salvaguardas para a produção de roteiros e direitos contra o uso indevido de imagens. O protesto jogou luz para o problema.

A possível substituição de artistas por IA generativa expõe o limite que se pretende tensionar. Mas até que ponto é possível esticar a corda? Um trecho do discurso da ministra Cármen Lúcia ao tomar posse na presidência do TSE – eu sei, uma referência bem fora desse texto – diz assim: “As plataformas se podem ler em dados que o intelecto humano é capaz de criar. Mas, até aqui, não descobriram o algoritmo da alma humana”.

Para as empresas, a alma humana pode não ser tão relevante quanto o lucro. Entregar uma dublagem mal feita que só algumas pessoas vão reparar e, mesmo assim, não vão deixar de assistir OU valorizar os profissionais da área e gastar um pouco mais com isso? Para a Globoplay, a primeira opção foi mais atrativa.

Em nota ao jornal O Globo, a Globo – todos do mesmo grupo, mas empresas diferentes – disse que “sempre esteve na vanguarda da inovação tecnológica, e não tem sido diferente com a adoção da inteligência artificial”. A empresa disse que testa as ferramentas, mas sempre “de forma ética, com transparência, buscando a qualidade e respeitando a questão dos direitos”. 

“Foi o que aconteceu, por exemplo, em ‘Rio-Paris’: cumprimos o compromisso assumido com algumas empresas de dublagem de não utilizar as vozes de seus dubladores através de processos de IA ou para o treinamento de IA”, completou a nota emitida.

A campanha Dublagem Viva, que surgiu no ano passado para pressionar a regulação de IA no setor da arte e da cultura, estimou que aproximadamente 50 profissionais direta e indiretamente ligados à dublagem perderam trabalho com essa escolha da Globoplay. “Todos perdem quando se escolhe uma dublagem sem vida”, diz a campanha na publicação.

“A língua portuguesa em sua variante brasileira é fruto do nosso país. Ao se utilizar inteligência artificial generativa para dublar uma obra audiovisual, mesmo usando as vozes originais como base, temos um produto de baixa qualidade, com a melodia e o ritmo de outro idioma.

Além disso, o barateamento dos custos de produção dessa dublagem não são repassados para o assinante, que continua pagando uma mensalidade alta para consumir um produto cada vez pior”, diz a campanha dos dubladores.

Os dubladores argumentam que é essencial preservar a expressão vocal, emoção e interpretação artística que os profissionais trazem para o processo de dublagem. “A tecnologia deve ser vista como uma ferramenta complementar, não como um substituto”, colocam. Para isso, clamam por uma regulamentação que trate do tema e equilibre os avanços tecnológicos com a preservação de empregos.

Outro ponto que não podemos deixar de lado é como essa dublagem foi feita. Uma matéria do portal Notícias da TV alerta para os métodos obscuros que a empresa Elevenlabs, contratada pela Globo, usa para alimentar a tecnologia com dados para a geração das vozes. 

Ou seja, uma série de polêmicas que terminaram ofuscando um excelente trabalho de resgate da história do voo 477 e preservação da memória sobre um dos maiores acidentes aéreos do país. No entanto, é um debate inadiável, até porque a IA já está nas nossas telas e às vezes de uma forma nem tão transparente como neste caso. 

E, para finalizar a reflexão/desabafo, compartilho a frase que rodou a internet na última semana e reflete bem o sentimento por aqui: Quero que a IA lave a roupa e a louça enquanto eu faço arte e escrevo. Não quero que a IA faça arte e escreva enquanto eu lavo a roupa e a louça”.

* Para que fique claro, esse texto foi escrito por uma humana. Por enquanto, eu ainda escrevo enquanto o meu robô aspirador passeia pela sala me poupando uns minutinhos do dia. 

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Liz Nóbrega

Doutoranda em Comunicação na USP e repórter do *desinformante.

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